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11 de dezembro de 2010

Garras artificiais 

Por Vital Moreira

No novo plano de superausteridade da Irlanda, destinado a preparar a ajuda da UE e do FMI à sua dramática situação financeira, há de tudo, desde um corte drástico nos funcionários públicos até à redução do salário mínimo, desde a redução de remunerações até ao aumento dos principais impostos. Tudo menos uma coisa: nenhum aumento do imposto sobre os lucros das empresas, apesar de ser um dos mais baixos da UE. Porquê esta incongruência?

Grande parte do chamado milagre económico do "tigre celta" nas últimas duas décadas, com taxas de crescimento quase "asiáticas", ficou a dever-se não somente à bolha imobiliária alimentada pelo crédito barato trazido pelo euro e explorado pelos bancos mas também aos baixos impostos sobre as empresas e sobre o rendimento pessoal, que atraíram enormes investimentos, tanto europeus como sobretudo norte-americanos, interessados em entrar no mercado interno europeu. A Irlanda tem uma das mais baixas taxas de imposto sobre os lucros, 12,5%, menos de metade da média europeia. Em muitos países a taxa desse imposto é muito superior, como na França (25%) e na Alemanha (30%).

O dumping fiscal irlandês parecia ser uma receita de sucesso. Arrasando os demais competidores europeus, a Irlanda atraía mais investimento estrangeiro, que criava crescimento e emprego, melhorava a competitividade externa da economia, fomentando as exportações, e ainda por cima permitia que o Estado, apesar das baixas taxas, arrecadasse um elevado montante do imposto, por efeito do aumento da massa de lucros tributáveis. Se a isto se acrescentar a criatividade dos bancos irlandeses na exploração do "boom" imobiliário e em aplicações especulativas, aí temos a chave do sucesso irlandês (com muitos apóstolos entre nós...).

Até que do outro lado do Atlântico veio a crise financeira, primeiro, económica depois, que revelou a excessiva "alavancagem" dos bancos irlandeses, trouxe a contração do mercado imobiliário e da economia em geral, numa espiral de deflação financeira, de retração do investimento, de desemprego, de "default" hipotecário, de perda de receita fiscal do Estado, de disparo do défice orçamental, de subida da dívida pública. Para agravar as coisas, logo no início da crise financeira, o Governo garantiu que nenhum banco seria deixado cair. O custo orçamental do resgate dos bancos subiu para números estratosféricos. Com baixas receitas fiscais, em consequência dos baixos impostos e da recessão económica, o défice orçamental ultrapassa este ano os 30% do PIB (quase cinco vezes superior ao défice de Portugal).

Só restava recorrer à ajuda externa e lançar outro programa de austeridade ainda mais drástico do que o anterior, incluindo um substancial aumento de impostos. Todavia, o Governo irlandês decidiu manter intocado o imposto sobre as empresas. Parece uma opção ilógica, tendo em conta as necessidades orçamentais e a conveniência de preservar um mínimo de equidade na repartição social dos sacrifícios. É evidente que para poupar os lucros, o plano de austeridade teve de agravar mais os outros impostos ou de fazer cortes ainda mais profundos na despesa pública. Para um plano que prevê o despedimento de milhares de funcionários públicos e a redução do salário mínimo, afigura-se ser um escândalo salvaguardar o privilégio fiscal das empresas.

Sendo assim, por que é que o Governo irlandês se negou terminantemente a subir o imposto e por que é que nem a oposição interna nem os demais Estados-membros, que vão suportar uma parte da ajuda à Irlanda, não fazem questão disso? A razão é simples: no ambiente de severa recessão económica em que se encontra o país, a subida do imposto sobre as empresas poderia ter efeitos contraproducentes, na medida em que a redução da competitividade poderia não somente agravar a recessão e o desemprego mas também reduzir a própria receita do imposto. Tal como um viciado em droga em situação de crise, a privação da droga do dumping fiscal poderia provocar o coma económico e financeiro da Irlanda.

A desventura irlandesa testemunha os efeitos perversos de uma das piores inconsistências da integração económica europeia, que consiste na construção de um mercado interno, baseado na concorrência sem fronteiras no espaço da União, sem contudo estabelecer um mínimo de harmonização fiscal, sobretudo dos impostos mais relevantes para a atividade económica, como é o imposto sobre os lucros das empresas (para além dos impostos sobre os rendimentos de capital e sobre as poupanças). Como é possível existir um "level playing field" concorrencial entre as empresas no mercado interno europeu, se os Estados-membros mantêm plena liberdade de baixar os impostos sobre a atividade económica, de modo a "dopar" a competitividade das suas empresas face às de outros países (e à custa delas)? Como é que o mercado interno pode ser compatível com a competição fiscal e com uma corrida à redução fiscal, pondo em causa a sustentabilidade fiscal dos Estados?

Como nunca foi possível alterar a inicial regra da unanimidade em questões fiscais - por alegadas razões de soberania, nuns casos, por puro oportunismo, noutros -, a questão só poderia ser resolvida mediante um forte impulso político, capaz de conduzir a um mínimo de harmonização fiscal. Independentemente disso, é lamentável que os Estados-membros, que vão suportar uma parte da ajuda à Irlanda - e que têm em geral impostos mais elevados -, não tenham aproveitado para obter contrapartidas nesta matéria. Mesmo admitindo que não se podia impor à economia irlandesa neste momento uma súbita sobrecarga fiscal, era mais do que justo exigir um compromisso de subida do imposto logo que a recuperação económica o permitisse.

Não se pode perder uma oportunidade de ouro como esta para atacar o dumping fiscal na União Europeia.

(Público, terça-feira, 30 de Novembro de 2010)

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