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9 de setembro de 2010

Para que servem as ordens profissionais? 

Por Vital Moreira

Há pouco tempo, a propósito dos casos de cegueira em resultado de cirurgias oftalmológicas praticadas numa clínica privada do Algarve, veio a saber-se que contra o médico acusado está pendente uma queixa na Ordem dos Médicos desde 2004. Confrontada com a denúncia pública do facto, a ordem veio proclamar pura e simplesmente que não tem condições para apreciar todas as queixas em tempo útil, alegadamente por escassez de membros do órgão competente. A gravidade desta afirmação não pode passar sem o devido registo público.

Em Portugal, como em muitos outros países, o Estado entregou às próprias profissões organizadas a tarefa de regulação e de supervisão profissional, designadamente no que respeita ao cumprimento dos deveres deontológicos e das boas práticas profissionais, bem como a punição das eventuais infrações (autodisciplina profissional). Ao contrário das associações de direito privado, que são de criação e de inscrição voluntária e que não dispõem de poderes de autoridade pública (salvo casos excecionais de delegação), as ordens profissionais - como se denominam oficialmente entre nós desde o início, copiando a designação italiana - são criadas por lei e são de inscrição obrigatória, como condição de exercício da profissão, sendo caracterizadas pelos poderes públicos que lhe são conferidos legalmente, designadamente na área da disciplina profissional.

Como é inerente à sua natureza de organismos de base associativa, as ordens acumulam o exercício de poderes públicos, em nome e representação do Estado, com a representação e defesa dos interesses coletivos da respetiva profissão, o que lhe confere uma natureza dualista, que pode levar a verdadeiras contradições, sempre que a defesa dos interesses profissionais as conduzirem a opor-se às políticas públicas para o respetivo setor. Mesmo fora de qualquer conflito, há sempre o risco de as ordens dedicarem os seus meios e recursos financeiros mais à promoção dos interesses profissionais do que ao desempenho das tarefas públicas que as justificam. Como mostra a experiência, nossa e alheia, não é pouco frequente esta ocorrência. Se precisássemos de um exemplo flagrante, a Ordem dos Médicos serve como nenhuma outra.

Pelo grande número de profissionais e pelo prestígio da profissão médica, a Ordem dos Médicos conta-se entre as mais influentes ordens profissionais. Pela densidade do seu código deontológico e pelos bens e valores postos em perigo pela respetiva violação, a Ordem dos Médicos deveria ser a mais zelosa e mais eficaz de todas no desempenho das suas funções de vigilância e de disciplina profissional. Lamentavelmente, não é, como é notório.

Desde há muito que se acumulam as provas de que a OM não leva tão a sério como devia o exercício das suas tarefas públicas, ao mesmo tempo que dedica o maior desvelo - e grande parte dos seus meios - à organização de utilidades e serviços para os seus membros, desde viagens a seguros profissionais, passando pela formação profissional. A complacência com que a Ordem encara desde sempre a escandalosa banalização dos atestados médicos de favor, o laxismo com que reage às frequentes denúncias de "turismo médico" a propósito de congressos patrocinados por laboratórios farmacêuticos, a falta de reação forte contra a contratação de serviços médicos por intermédio de agências de colocação - que são um atentando à dignidade da medicina - e, last but not the least, o desmazelo na prossecução da mais nobre das suas funções públicas, que é a fiscalização do cumprimento do código deontológico e das convenções da profissão, tudo isto mostra que a Ordem dos Médicos não está à altura das suas responsabilidades como organismo público de autorregulação profissional legalmente instituída.

O episódio acima referido da falta de instrução de uma queixa por negligência ou incompetência médica é grave em si mesmo. Mais grave, porém, é a "cândida" confissão da Ordem de que não possui meios para cumprir essa missão, o que significa que não se tratou de um caso isolado mais sim de uma omissão sistemática. Se não tem meios, devia providenciar para os obter. Não está na discricionariedade da Ordem desempenhar ou não as suas funções públicas. Elas são de exercício obrigatório. É lamentável que a Ordem dos Médicos - de resto, como outras - não se tenha dotado de um serviço de inspeção permanente que lhe permita investigar e processar as queixas que lhe são dirigidas ou as infrações de que tenha oficiosamente conhecimento.

A filosofia que justifica que o Estado recorra à autodisciplina profissional no caso das chamadas profissões liberais, entregando às próprias profissões a supervisão e a punição das infrações disciplinares dos seus membros, fundamenta-se na ideia de que é do interesse delas próprias zelar pelo bom-nome e prestígio coletivo da profissão, sancionando as infrações profissionais e punindo os maus profissionais, assim garantindo os direitos e interesses dos utentes. Sempre foi esta a lógica da autorregulação profissional em geral. Em Portugal, porém, há ordens profissionais que preferem deixar degradar o crédito público da profissão que representam, abstendo-se deliberadamente de zelar pela disciplina profissional, à custa dos utentes e do interesse público.

Mais estranho ainda é que aparentemente a generalidade dos profissionais se resigne com o mau serviço que a sua Ordem presta à profissão, prejudicando a todos, em benefício dos maus profissionais que ficam impunes. Nem eles nem o Estado deveriam conformar-se com tal situação.

(Público, terça-feira, 31 de Agosto de 2010)

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