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19 de agosto de 2010

Dois em um 

por Vital Moreira

O excesso de despesa pública não pode ser atacado apenas com cortes no investimento público, que afetam o crescimento económico e o emprego, com reduções conjunturais na despesa corrente, que não têm efeitos continuados, ou com ganhos de eficiência no funcionamento dos serviços, pois sempre há limites para eles. Importa ver, por isso, onde se podem fazer poupanças estruturais, sem prejudicar a qualidade dos serviços públicos, ou até melhorando-a.

Um dos setores onde se pode obter uma considerável redução estrutural da despesa pública é a administração local, através da diminuição do número de autarquias territoriais, bem como do número de membros dos seus órgãos executivos.

É indesmentível que existem numerosos municípios e freguesias com população diminuta, abaixo do limiar que deveria ser considerado mínimo, especialmente por efeito da deslocação das populações das zonas rurais e dos centros urbanos. Freguesias com escassas centenas de moradores e municípios com poucos milhares de habitantes deveriam ser fundidos ou incorporados nas freguesias ou municípios confinantes com que tenham mais afinidade, de acordo com critérios gerais objetivos antecipadamente definidos.

Essas autarquias territoriais não podem reunir recursos financeiros nem capacidades humanas e logísticas suficientes para levar a cabo as suas funções. Constituem um peso excessivo para o Orçamento do Estado, que financia grande parte das suas despesas, e para os seus residentes, que pagam as taxas e impostos municipais sem o retorno devido. A fusão ou incorporação dessas autarquias territoriais não permitiria somente uma enorme poupança financeira, mas também uma substancial melhoria para os administrados, seja no que respeita aos serviços administrativos (licenciamento, fiscalização de obras particulares, etc.), seja nos serviços prestacionais (ruas e estradas, água e saneamento, serviços culturais e desportivos, etc.).

Apesar de algumas alterações "ad hoc", a geografia administrativa não acompanhou as enormes mudanças demográficas por que o país passou nas últimas décadas. Não é preciso fazer muitas contas para concluir que é possível reduzir em mais de 10% o número de freguesias e municípios existentes, sem nenhum prejuízo para os serviços públicos locais, antes pelo contrário. Infelizmente, desde o 25 de Abril a tendência política tem sido a inversa, tendo havido a proposta de criação de centenas de novas freguesias e de dezenas de novos municípios. É certo que algum bom senso acabou por prevalecer, tendo-se a deriva fragmentarizante do território saldado com a criação de apenas mais quatro municípios e de mais de 200 freguesias. Poderia ter sido bem pior.

O que não chegou a ganhar força foi o movimento inverso, para a redução do número autarquias territoriais nas áreas que perderam população, mediante incorporação ou fusão das que não preencham requisitos mínimos de residentes. Não foi extinto nenhum município e só foram eliminadas cinco freguesias. Na legislatura passada o programa do Governo PS incluiu um tal objetivo, não tendo porém sido realizado. É esta a altura própria de o reavivar. Primeiro, porque a necessidade de consolidação estrutural das finanças públicas assim o exige. Segundo, porque nas atuais circunstâncias pode ser possível a convergência política entre dos principais partidos políticos, sem a qual uma tal reforma nunca será realizada. Terceiro, porque as reformas entretanto realizadas na educação e na saúde mostraram que só há vantagens, tanto para as finanças públicas como para os utentes, no encerramento de serviços públicos sem serventia para um mínimo de utentes, que nunca podem assegurar um serviço público decente.

Outra reforma que ficou pelo caminho na legislatura passada, aí por exclusiva responsabilidade do PSD (que se tinha comprometidos com ela e depois "roeu a corda"), foi a revisão do sistema de governo das autarquias locais, que incluía também uma significativa redução na composição das câmaras municipais. De facto, é evidente o excesso de membros destas, muito devido à adoção da eleição direta dos executivos municipais por via proporcional, que levou a órgãos multitudinários, compreendendo a maioria e a oposição, à custa da coesão e eficiência da gestão municipais. Com o proposto abandono da eleição direta torna-se possível diminuir o número de vereadores, com vantagens para as finanças municipais e para a eficiência da gestão municipal. Mais uma vez, as atuais circunstâncias políticas podem proporcionar a convergência interpartidária que não foi possível na legislatura anterior.

Não é difícil imaginar as resistências que reformas destas podem suscitar, sobretudo a primeira. Por um lado, os partidos políticos dependem muito das suas bases autárquicas, pelo que qualquer redução do número de autarquias ou na composição dos órgãos locais implica sempre uma diminuição de postos políticos disponíveis para as elites partidárias locais. Por outro lado, nada há de mais propenso ao populismo e à demagogia local do que a defesa da condição de freguesia ou de município (a par da qualificação honorífica como "vila" ou "cidade", em cuja criação compulsiva se desperdiçaram milhares de páginas do Diário da República ao longo das últimas décadas). Por isso, erra quem suponha que basta provar a racionalidade e as vantagens destas reformas para as ver aprovadas no Parlamento.

Sucede que as situações de provação financeira como as que vivemos costumam ser as mais apropriadas para realizar reformas que em tempos mais tranquilos não seriam possíveis. Prouvera que não falte o sentido da responsabilidade e a determinação política que nestas alturas são as qualidades políticas mais necessárias e mais virtuosas. As finanças públicas agradeceriam e a qualidade da democracia local também. Dois em um.

(Público, terça-feira, 1 de Junho de 2010)

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