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30 de dezembro de 2008

A via europeia 

Por Vital Moreira

A crise financeira internacional, que nasceu nos Estados Unidos e contaminou todo o mundo, condenou irremissivelmente as teorias e as práticas do "capitalismo laissez-faire", que se traduziram em notórios défices de regulação financeira (e não só), bem como em algum laxismo regulatório por parte das próprias entidades reguladoras. Quais são as implicações do fim do "império do mercado livre", que prevaleceu nos últimos trinta anos?

A cândida confissão de Alan Greenspan - um dos sacerdotes da regulação mínima dos mercados financeiros -, de que se enganou ao acreditar que os mercados se regulavam a si mesmos, constitui o dobre de finados para a ideia ultraliberal de que as "falhas de mercado", se não são uma invenção dos "estatistas", pelo menos não carecem de nenhuma regulação intrusiva do Estado. Doravante, só os fundamentalistas dogmáticos poderão contestar a necessidade de ampliar a aprofundar a regulação pública lá onde a "mão invisível" não dá conta do recado, nomeadamente no sector financeiro, desde o crédito hipotecário aos produtos derivados, desde os bancos de investimento (se sobreviverem a esta crise) às agências de rating, etc.

O "Estado regulador", que alguns quiseram reduzir a Estado espectador, vai reclamar a sua missão de ordenação da economia, corrigindo as falhas de mercado, tal como o faz com as falhas da concorrência. O que também se mostrou foi que os fenómenos da integração económica (como o mercado único europeu) e de globalização já não podem ser regulados a nível nacional, exigindo políticas e instrumentos de regulação a nível supranacional e global. Não faz sentido reforçar a regulação financeira a nível nacional, se ela puder ser eludida por via internacional. Daí a necessidade de erigir mecanismos de regulação no seio da UE e de refundar o sistema financeiro internacional. Desse ponto de vista, há que saudar a iniciativa da presidência francesa da UE de propor uma cimeira internacional para esse efeito.

A revisão da regulação do sistema financeiro não é todavia a única consequência da crise financeira. As sequelas económicas da crise, que ameaçam uma recessão prolongada, senão uma depressão global da economia, obrigaram os estados e as instituições financeiras internacionais a políticas pró-activas de sustentação do sistema financeiro e da própria economia. Entre as primeiras, contam-se a garantia de liquidez e de solvabilidade do sistema bancário, sem o qual a economia se afundaria. Entre as segundas incluem-se as políticas de investimento público e de despesa pública em geral, de modo a fomentar a actividade económica, numa típica revivescência das tradicionais políticas anticíclicas, mesmo à custa do endividamento público. A segunda consequência é, portanto, o renascimento de John Maynard Keynes e das soluções que ele preconizou há setenta anos, na sequência do crash financeiro de 1929, sobretudo as virtudes da despesa pública.

A terceira consequência é a renovação da importância das políticas sociais, em consequência dos impactos da crise económica sobre o emprego e sobre as condições de vida das camadas mais vulneráveis da população. Nas últimas décadas, nunca o Estado social se mostrou tão necessário e tão pertinente como nesta época de incerteza económica e social. Sem a almofada dos direitos sociais, a crise financeira e os seus malefícios sobre o crescimento económico e sobre o emprego criariam uma intolerável degradação das condições de vida, senão de miséria social, de milhões de pessoas. Juntamente com o triunfo do Estado regulador, a crise do ultraliberalismo é também o triunfo do Estado social, sob pressão neoliberal há várias décadas.

Em contrapartida, não há razão para o júbilo que os círculos comunistas e da esquerda radical em geral manifestam, na iminência de uma "crise geral do capitalismo". Não faltam mesmo os que propugnam, a toda a força, maciços programas de nacionalização não só no sistema financeiro, mas também na economia em geral. As notícias da morte iminente do "capitalismo de mercado" são ligeiramente exageradas, quanto mais não seja por falta de alternativas. A economia de mercado pode ser o pior sistema económico, descontados todos os demais conhecidos, designadamente o modelo de "economia socialista" baseado na propriedade pública dos meios de produção e no planeamento central da economia, que deu os resultados que deu.

O que está em causa não é a economia de mercado como tal, mas sim a versão ultraliberal que dominou nas últimas décadas, com desregulação ou regulação deficiente dos sectores onde o mercado não funciona deixado a si mesmo, como é o caso do sector financeiro. O que está de volta, sim, é a distinção entre diferentes "modalidades de capitalismo", entre o "capitalismo laissez faire" e o "capitalismo regulado", entre a economia de mercado liberal e a "economia de mercado social". No caso da Europa, trata-se de recuperar a sua tradição de síntese virtuosa entre o liberalismo económico ordenado e o Estado social, que o fundamentalismo liberal das últimas décadas ameaçou subverter.

Por conseguinte, falham a resposta aos problemas da época presente tanto os que insistem nas soluções que provocaram a crise em curso, ou que recusam os remédios para lhe responder (como sucede entre nós com a patética cruzada do PSD contra os investimentos públicos), como os que insistem em remédios de estatização da economia, que a história irremediavelmente condenou, quer em termos de desempenho económico, quer em termos de liberdade individual e colectiva.

Entre os extremos do radicalismo liberal e do radicalismo estatista, nunca fez tanto sentido falar numa específica "via europeia", no sentido de uma economia de mercado regulada por um Estado comprometido com o bem-estar colectivo e a justiça social.

(Publico, terça-feira, 28 de Outubro de 2008)

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