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31 de dezembro de 2008

Uma proposta falhada 

Por Vital Moreira

Acerca da proposta de reforma do sistema eleitoral da Assembleia da República recentemente apresentada por uma equipa liderada por André Freire (ISCTE), alguém disse que ela "morreu no dia da sua apresentação pública", dadas as críticas generalizadas de que foi objecto. Compartilhando dessas críticas, cumpre-me explicar porquê.

Antes de mais, não questiono os principais pontos de partida da proposta, designadamente (i) a criação de um círculo eleitoral nacional, sobreposto aos actuais círculos distritais, (ii) a divisão dos actuais círculos eleitorais de maior dimensão (de modo a diminuir a distância entre os eleitos e os eleitores) e (iii) a atribuição de dois votos aos eleitores (um para o círculo distrital, outro para o círculo nacional).

Um círculo nacional de dimensão razoável teria várias vantagens: asseguraria, à partida, o pluralismo e um mínimo de proporcionalidade na representação parlamentar; facilitaria a eleição das elites partidárias, dispensando o tradicional fenómeno dos cabeças de lista "pára-quedistas" nos círculos distritais; e, sobretudo, combinado com o duplo voto, daria relevância ao voto de todos os eleitores em todo o território nacional, incluindo nos pequenos partidos parlamentares que hoje não elegem ninguém na maior parte dos círculos, tornando inútil o voto dos seus eleitores na maior parte do território ou reforçando a tendência para a abstenção ou para o "voto útil" num dos grandes partidos.

Por sua vez, a desagregação dos círculos maiores (designadamente Lisboa e Porto), gerando um maior número de círculos, e mais pequenos, proporcionaria maior proximidade e visibilidade dos candidatos e dos deputados, valorizando eleitoralmente a personalidade dos candidatos e facilitando a responsabilização dos deputados pelos eleitores, sem abdicar porém da representação pluripartidária e proporcional que só os círculos plurinominais permitem (ao contrário dos círculos uninominais).

O que é há então de errado na referida proposta? Reduzindo a apreciação à arquitectura do sistema, deixando de lado outras questões (como o controverso "voto preferencial" nos círculos distritais), as falhas estão, por um lado, na excessiva magnitude do círculo nacional, que elegeria quase metade dos deputados (roubando outros tantos aos círculos territoriais de base), e, por outro lado, no desenho dos círculos territoriais de base.

Em primeiro lugar, a enorme magnitude da lista nacional (99 deputados na versão preferida pelos autores) é manifestamente contraditória com um dos objectivos centrais da reforma, que é a de dar visibilidade aos candidatos e deputados e aproximá-los dos eleitores. Não há nada de mais anónimo e distante do que uma lista nacional de uma centena de candidatos (quase metade do número total de deputados da AR), escolhidos directamente pela direcção nacional dos partidos.

Em segundo lugar, dar-se-ia uma enorme redução do número global de deputados a eleger nos círculos distritais, o que diminuiria drasticamente a representação territorial do Parlamento, reduziria a metade (ou quase) o número de deputados dos actuais círculos eleitorais, obrigaria a agregar os círculos mais pequenos em novos círculos territorialmente muito extensos (sobretudo no interior) e elevaria para quase o dobro o rácio entre deputados e eleitores, o que é totalmente contraditório com o objectivo de aproximar os deputados dos eleitores.

Em terceiro lugar, o elevado número de deputados do círculo nacional provocaria uma baixa inaceitável no limiar eleitoral de entrada no Parlamento (bastando algo como 0,8%...), permitindo a representação parlamentar de micropartidos extremistas, não sendo lícito impedir esse resultado por meio de uma "cláusula-barreira" de 1,5% (como propõem os autores), por esta ser desde logo constitucionalmente interdita, além de politicamente "invendável".

Em quarto lugar, sendo de esperar que o círculo nacional proporcione uma sensível subida da votação nos pequenos partidos em relação ao nível actual (dado que os votos na lista nacional passarão a ser relevantes em todo o território nacional, o que afasta a pressão para o "voto útil" em muitos distritos, como hoje sucede), o sistema proposto levaria a um imprevisível aumento da proporcionalidade geral do sistema ("sobrecompensando" a redução da proporcionalidade nos círculos distritais), favorecendo os pequenos partidos e desfavorecendo os maiores em relação ao actual sistema, fomentando a fragmentação política do parlamento, reduzindo o actual "prémio eleitoral" dos maiores partidos e, em suma, prejudicando a governabilidade.

Ainda no que respeita à arquitectura dos círculos eleitorais, não pode concordar-se também com a manutenção da tradicional divisão distrital no continente, que vem desde 1975 (aliás, seguindo a solução do Estado Novo...), quando os distritos ainda eram autarquias locais e tinham um lugar central na administração territorial do Estado. Nada disso é assim hoje.

Antes de estarem condenados a prazo pela regionalização, os distritos administrativos foram sendo esvaziados de funções, que hoje são marginais (segurança pública, protecção civil e pouco mais), deixando de ser um factor de identidade territorial das populações. Mais importante do que isso, a divisão distrital não se harmoniza com a nova divisão territorial da administração do Estado e da administração local, hoje baseada nas cinco regiões-plano (NUTS II) e nas 28 sub-regiões (NUTS III), sendo estas agora a base territorial das novas "comunidades intermunicipais" (CIM). Por conseguinte, a manutenção do distrito como circunscrição eleitoral consolidaria a actual "esquizofrenia" territorial, além de impedir a coincidência entre os círculos eleitorais para a AR e os círculos eleitorais das futuras autarquias regionais (previsivelmente baseados nas "comunidades intermunicipais").

(Público, terça-feira, 16 de Dezembro de 2008)

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