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11 de junho de 2008

Quando o Estado social conta 

Por Vital Moreira

É evidente que o abalo por que passa a economia não pode deixar de ter um impacto social negativo, sobretudo sobre as camadas economicamente mais vulneráveis da população. Mas a sua dimensão não pode ser empolada, como se tem feito, com muita demagogia à mistura. Em todo o caso, Portugal está hoje muito mais bem apetrechado do que no passado para enfrentar situações de crise social, se ocorrerem.

Olhando para atrás, era uma ilusão pensar que uma pequena economia tão aberta como a nossa podia ficar imune aos factores negativos externos, designadamente a crise financeira do crédito hipotecário norte-americano (que produziu um aperto no crédito), a valorização do euro contra o dólar (que encareceu as exportações para fora da zona euro), o aumento contínuo do preço dos combustíveis (que agrava os custos de toda a economia) e a inflação das cotações internacionais de algumas matérias-primas e alimentos (incluindo o arroz e o trigo).

Um dos traços preocupantes da actual conjuntura é a combinação anómala do arrefecimento económico (restrições no crédito, diminuição do investimento e da criação de emprego, etc.) com uma inflação alta, causada sobretudo pela contínua elevação do preço dos combustíveis e de algumas matérias-primas e alimentos. Ou seja, o pior de dois mundos: travagem nos rendimentos e aceleração dos preços.
Ora, mesmo que os efeitos da crise financeira norte-americana possam ser transitórios, o mesmo não parece suceder com a alta dos preços dos combustíveis, em que o melhor que se pode esperar é a paragem da subida e uma relativa estabilização dos preços, sem regresso porém à situação anterior. O novo "choque petrolífero" veio para ficar, gerado essencialmente pela incapacidade da oferta de responder à crescente procura internacional de combustíveis (sobretudo por causa das enormes necessidades da China e da Índia), sendo de prever um longo período de adaptação estrutural a um novo paradigma económico menos dependente do petróleo.

Acresce que também não são boas as notícias do nosso principal parceiro económico, ou seja, a Espanha, onde a situação se agravou muito além do previsto, com forte revisão em baixa do crescimento, do investimento e do emprego (prevendo-se que o desemprego possa chegar aos 11 por cento este ano!). Dada a profunda ligação da economia portuguesa com a Espanha, nossa importante cliente e investidora, bem como empregadora de mão-de-obra portuguesa, o impacto da situação espanhola em Portugal pode ser ainda mais negativo do que o esperado.

Não podendo, nem devendo, intervir no mercado para suster a alta dos preços, resta ao Estado actuar dentro do possível para apoiar as empresas e estimular a economia (mesmo sabendo os limites de tais exercícios) e para atenuar o impacto social da situação económica. E esperar que a tempestade passe...

No plano social as implicações do arrefecimento económico e da carestia dos combustíveis não podem deixar de ser negativas, incluindo a diminuição do poder de compra, a redução dos consumos não prioritários (como as viagens), o aperto das situações de endividamento (em que muitos portugueses se envolveram com uma notória irresponsabilidade financeira).

Mesmo que alguns desses efeitos sejam virtuosos, como a menor utilização do automóvel individual em benefício dos transportes colectivos - mudança que temos de interiorizar doravante -, a verdade é que nestas situações são muitos os perdedores líquidos em termos de rendimento e de frustração de expectativas de bem-estar.

Apesar de tudo, a situação social está longe de se poder considerar de "emergência social" ou de "fome", como dois candidatos à liderança do PSD proclamaram, no calor demagógico da campanha interna daquele partido. Mesmo que a situação económica se viesse a agravar muito, Portugal dispõe hoje de mecanismos de protecção social que não possuía no passado. Nem sequer tem fundamento a ideia de que a pobreza em Portugal esteja a aumentar, como os media divulgaram há dias, aliás com dados desactualizados. Na verdade, nos últimos anos foram tomadas várias medidas que vieram reforçar os instrumentos de resposta às situações sociais mais vulneráveis, designadamente a revisão do rendimento mínimo de reinserção (RSI), a criação do subsídio complementar para idosos pobres, o aumento real do salário mínimo e das pensões mínimas, a elevação dos abonos para as famílias numerosas e dos apoios à maternidade, a ampliação da rede de estabelecimentos sociais (infantários, lares de idosos, etc.).

Mesmo que a actual situação viesse a aproximar-se da gravidade das grandes crises sociais do século passado - o que nada indica que possa suceder -, não há nenhuma razão para recear que ela pudesse ter a dimensão de sofrimento humano e de desespero social que aquelas tiveram (algumas ainda nos anos 80, com a vaga de desemprego e dos salários em atraso). Por mais que alguns pescadores de águas turvas políticas pretendam ignorar, o Estado social - para que eles pouco ou nada contribuíram - é hoje uma realidade indesmentível.

Desde 1974 foram criados o sistema nacional de Segurança Social (incluindo pensões para quem nunca pagou contribuições), o subsídio de desemprego, o Serviço Nacional de Saúde (universal e geral, bem como gratuito para grande parte da população), o rendimento mínimo garantido (actual RSI), a universalização e ampliação do ensino básico gratuito e o reforço dos apoios aos alunos carenciados, a criação e sucessiva expansão do ensino pré-escolar, apoios à habitação social, deduções fiscais das despesas sociais, etc. Juntamente com a liberdade e a democracia política e com a modernização do país, o Estado social de que hoje beneficiamos, por mais insuficiências que tenha, constitui uma das grandes e genuínas "conquistas do 25 de Abril". É nestas alturas que podemos apreciar o seu valor.

Público, 3ª feira, 27 de Maio de 2008

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