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15 de maio de 2008

Não há países grátis 

Por Vital Moreira

Para além de algumas inconstitucionalidades, o novo estatuto político-administrativo dos Açores, há dias aprovado na generalidade na Assembleia da República, contém manifestos excessos políticos, que não deveriam prevalecer. A autonomia regional não pode sobrepor-se sem limites aos interesses gerais da República.

Antes de mais, na proposta vinda da assembleia regional dos Açores avultam duas noções que inquinam politicamente todo o exercício, a saber a ideia do "adquirido autonomista" e a ideia da "autonomia progressiva". A primeira visa obviamente estabelecer uma espécie de "irreversibilidade das conquistas autonómicas", o que em si mesmo não seria muito grave se ela não visasse manifestamente abranger o actual regime financeiro da região, o qual, porém, só se compreende enquanto o desenvolvimento dos Açores se mantiver abaixo da média nacional. Por sua vez, a noção de "autonomia progressiva" procura manter permanentemente em aberto e sob tensão a questão regional, sem fim e sem limite à vista, o que é incompatível com a unidade do Estado.

Outro aspecto politicamente muito delicado, até pela sua duvidosa constitucionalidade, é a insistência num círculo eleitoral exterior ao território regional, alegadamente para incluir as pessoas com "dupla residência". Mas é evidente que, se elas têm uma efectiva residência nos Açores, devem votar nos círculos internos correspondentes, e não num fictício círculo da residência exterior, que não passa de uma descarada tentativa de criação de um conceito de "açorianidade" política extraterritorial (uma "nação açoriana"), que não é compatível com a noção de autonomia regional.

Também não pode merecer aprovação a possibilidade de delegação de atribuições do Estado e de serviços públicos nacionais no Governo regional. A verdade é que quase toda a administração pública já foi regionalizada há muito, sendo poucos os serviços estatais remanescentes das regiões (serviços judiciais, Forças Armadas, forças de segurança, instituições de ensino superior e pouco mais). Por isso, não se vê bem que serviços públicos estatais é que poderiam ser delegados ao governo regional. Além disso, só um propósito de expulsar o Estado da região é que pode justificar a transferência desses últimos esteios da administração nacional. Por último, seria de todo inaceitável que o Estado transferisse a gestão desses serviços, mantendo o encargo financeiro com os mesmos. Seria o melhor de dois mundos: regionalização de competências sem regionalização dos encargos!

Uma objecção ainda maior tem a ver com a norma que faz recair sobre o Estado a responsabilidade pela garantia universal das prestações públicas em caso de "incapacidade regional". Na verdade, as regiões autónomas beneficiam de todas as receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, não contribuindo, aliás, para as despesas gerais da República. O orçamento do Estado suporta ainda não somente os encargos com os serviços nacionais subsistentes nas regiões, alguns dos quais bem dispendiosos - como as Forças Armadas, as polícias e os tribunais -, mas também volumosas transferências adicionais para as regiões, a vários títulos. Seria por isso politicamente inaceitável que a região, por má utilização dos seus recursos financeiros ou pelo seu desvio para outros fins, viesse reclamar da República a garantia, por exemplo, de prestações de saúde ou de prestações de segurança social.

Acresce a estes (e outros) excessos políticos a existência de duas importantes lacunas, que a evolução autonómica tem evidenciado cada vez mais, tanto nos Açores como na Madeira.

A primeira falha diz respeito à ausência de uma obrigação de as regiões implementarem as leis da República no seu território. A questão da não-aplicação inicial da lei da IVG na Madeira tornou muito claros os riscos de não acatamento das leis nacionais no território regional, quanto elas dependem da sua execução pelos serviços regionais (já que quase toda a administração se encontra regionalizada).

A segunda falha tem a ver com as extraordinárias regalias financeiras das regiões, acima referidas. Ora, apesar disso, elas não contribuem para as despesas gerais da República (como, por exemplo, as despesas com as Forças Armadas e forças de segurança, com os órgãos de soberania, incluindo os tribunais, com as quotas devidas às organizações internacionais, desde a ONU à União Europeia), as quais são suportadas somente pelo Orçamento do Estado (ou seja, do continente). Ora, esta situação podia aceitar-se quando as duas regiões insulares eram as mais pobres de Portugal. Já não é assim, como se sabe, pois a Madeira é uma das regiões do país com maior PIB per capita e os Açores já estão acima de algumas regiões do continente, podendo alcançar dentro em pouco a média nacional. Sendo assim, nada justifica aquele bónus das regiões autónomas, que é uma sobrecarga injustificada sobre os contribuintes do continente. Além de financeiramente insustentável, essa isenção tornou-se politicamente imoral.

Continua a prevalecer nas regiões autónomas, sem grandes diferenças entre elas e entre as diversas forças políticas regionais, o entendimento de que elas só têm direitos e nenhumas obrigações, de que a "solidariedade nacional" é de sentido único e de que, visto das ilhas, o país não custa dinheiro e que o continente terá de continuar a ser sempre uma cornucópia para as regiões autónomas, por mais ricas que elas se tornem. Há dias, um conhecido porta-voz separatista madeirense afirmava provocativamente que "quem quer ilhas paga-as". Antes que um número crescente de portugueses se comece a interrogar sobre se o elevado preço se justifica, é caso para lembrar que não há países grátis e que os seus custos comuns devem ser suportados por todos, a começar pelos que gozam, ou estão em vias de gozar, de riqueza acima da média nacional.

(Público, 8 de Abril de 2008)

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