<$BlogRSDUrl$>

7 de março de 2008

Modernização de esquerda 

Por Vital Moreira

Se há uma linha orientadora no Governo de Sócrates, ela tem a ver claramente com a de modernização do País e do Estado. Não sendo, porém, a modernização em si mesma um exclusivo da esquerda, importa saber como é que um programa modernizador pode ser assumido como "leitmotiv" à esquerda, sem a sua descaracterização.

Antes de mais, faz todo o sentido a opção por uma estratégia modernizadora à esquerda, particularmente entre nós, tendo em conta a situação de atraso relativo e de impasse do País e a tradicional identificação da esquerda com as ideias de mudança e de progresso.

Desde pelo menos o século XVIII, quando se tornou mais agudo o sentido da nossa decadência e do nosso atraso económico, político e cultural, o grande desafio político foi a modernização. Os grandes debates culturais e políticos, ao longo destes três séculos, foram sempre entre o arcaísmo e modernidade, entre o nacionalismo e cosmopolitismo, entre o atraso e o progresso.

Para os portugueses, um País moderno é desde sempre um país tão desenvolvido, tão próspero, tão culto, em suma, tão civilizado como os países europeus de referência. Ora, um dos traços mais frustrantes da nossa situação como País europeu e membro da UE são os sinais de atraso e de subdesenvolvimento de que continuamos a padecer. Com a agravante de que, depois de um período inicial de convergência com os padrões europeus, sobreveio uma decepcionante involução, arrastando-nos desde há vários anos em divergência, e não somente no que respeita ao crescimento económico.

A modernização do País faz parte do património da história da esquerda em Portugal. As forças progressistas de cada época estiveram em geral na vanguarda do pensamento e dos projectos modernizadores. Sucede porém, que nem a modernização é um monopólio da esquerda nem a esquerda fez sempre jus às respectivas credenciais, incluindo nas últimas décadas. É indesmentível que entre nós, as características próprias da transição democrática pós 25 de Abril e a sua radicalização no período revolucionário, levaram a esquerda em geral, incluindo o PS, a posições de resistência à mudança. Acresce que a emergência do movimento neoliberal de desintervenção do Estado na economia e de desmontagem do Estado social colocou a esquerda na defensiva, que é o ambiente menos propício para qualquer discurso modernizador.

Por isso, qualquer que seja o juízo global sobre as políticas do actual Governo, não se pode deixar de saudar a adopção da modernização como a principal linha estratégica do discurso e do projecto da actual maioria, pelo desafio que isso traduz em termos de resposta aos problemas do País e de sobressalto doutrinário e político para o próprio PS.

A relação entre a modernização e a esquerda está longe de ser unívoca. Ainda que a modernização seja em geral positiva em si mesma, a modernização não é necessariamente de esquerda, nem sequer política ou ideologicamente neutra. Ao adoptar um discurso e um programa modernizador, que também implica uma modernização de si mesma, a esquerda corre o risco de autodescaracterização e de ser acusada de "deriva de direita".

Por isso, a esquerda não pode sacrificar a sua perspectiva própria a uma visão tecnocrática, alheia aos seus valores políticos, culturais, ambientais, etc. Isso vale para todas as áreas, mesmo aparentemente as mais "neutras". Por exemplo, a modernização das infra-estruturas não pode dar-se contra a defesa do ambiente e a coesão territorial, antes promovendo-as. A modernização da economia não pode visar somente aumentar a produtividade e competitividade internacional, não podendo deixar de ser caracterizada pela luta pelo emprego e pela sua qualidade, pela justiça nas relações laborais, pela garantia das "obrigações de serviços público" nos "serviços de interesse económico geral". A modernização da Administração pública não pode ter como objectivo somente a eficiência administrativa e o rigor das finanças públicas, mas também e sobretudo melhores serviços públicos para toda a gente. A modernização do sistema político não pode consistir somente em eliminar as suas disfunções, não podendo perder de vista a renovação da democracia, o incentivo a uma maior participação, o aumento da transparência e da responsabilidade política, e a descentralização territorial.

Mas onde não é possível perder uma perspectiva de esquerda é na modernização do Estado social. Em nenhuma outra área é tão necessário manter viva a identidade de esquerda e demarcar a diferença com a perspectiva da direita. Uma coisa é reformar a organização e gestão desses serviços para assegurar a sustentabilidade financeira e reforçar a capacidade de resposta do SNS, do serviço público de educação e do sistema de segurança social. Outra coisa é preparar o caminho para o seu desmantelamento ou reduzi-los a uma função supletiva de garantia de serviços mínimos às camadas sociais que não podem aceder à prestação privada desses meios.

Para a esquerda, os serviços sociais não são apenas uma obrigação pública de satisfação de direitos sociais de todos, aliás constitucionalmente garantidos, mas também um esteio essencial do Estado social, conquista europeia maior do século passado, como garantia de bem-estar, de coesão social e de igualdade de oportunidades. Por isso, a modernização do Estado social sob um ponto de vista de esquerda não é somente uma luta contra a direita, particularmente a de extracção neoliberal, que decretou a sua extinção. É também uma luta contra o conservadorismo da esquerda tradicional, que esquece que sem uma profunda reforma, que melhore o seu desempenho e racionalize os seus custos, o Estado social caminharia para a inexorável degradação e para a sua insustentabilidade, primeiro financeira e depois política.

Por isso, o sucesso de um governo de esquerda, incluindo a salvaguarda do seu "acquis" social, passa tanto pela modernização do País como de si mesma.
(Público, 26 de Fevereiro de 2008)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?