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6 de agosto de 2007

Dois países? 

Por Vital Moreira

Quando se consente que as autoridades regionais da Madeira façam prevalecer a sua explícita recusa em implementar uma lei da República, como é o caso da "lei do aborto", estamos na verdade a consentir a noção de dois países, onde vigoram leis diferentes e onde os cidadãos não gozam dos mesmos direitos, mesmo nos casos em que constitucionalmente se trata de assuntos da competência legislativa da República.
Recordemos os factos. No seguimento do referendo que determinou a despenalização do aborto até às dez semanas por opção da mulher, desde que realizado "em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido", uma lei da Assembleia da República veio alterar o Código Penal e estipular as condições da realização das interrupções de gravidez nos estabelecimentos de saúde, impondo designadamente uma consulta prévia e um período de reflexão de pelo menos três dias, respeitando assim não somente a decisão referendária, mas também os compromissos assumidos sobre a decisão livre, ponderada e responsável das mulheres interessadas. Uma portaria ministerial veio regulamentar a prática do aborto no SNS.
Tal como o referendo, também a lei que o implementou vale para todo o território nacional, incluindo nas regiões autónomas, onde os serviços públicos de saúde se encontram regionalizados, incumbindo-lhes executar a lei, cabendo aos governos regionais adaptar, se for caso disso, a referida portaria governamental. O facto de o SNS estar regionalizado não afasta a vinculatividade da lei, pois a regionalização dos serviços não inclui a definição do âmbito dos cuidados de saúde a prestar. Também estão regionalizados os serviços de segurança social e de educação, entre outros, e não consta que o governo regional pudesse recusar-se a cumprir uma lei que alargasse a cobertura da primeira ou a obrigatoriedade da segunda. Porém, se nos Açores a questão não suscitou nenhumas dificuldades, já na Madeira o governo regional tomou desde o início uma provocatória posição de não aplicação da lei.
A primeira justificação foi a de que a lei não seria implementada enquanto o Tribunal Constitucional não se pronunciasse sobre a sua constitucionalidade. Ora, mesmo que se tratasse de uma questão muito controversa (o que não é o caso, visto que houve uma fiscalização preventiva da constitucionalidade da pergunta do referendo), a verdade é que nenhuma autoridade política ou administrativa pode recusar-se a cumprir uma lei por alegada inconstitucionalidade. Enquanto uma lei não for declarada inconstitucional, ela tem de ser cumprida. O eventual pedido de fiscalização da constitucionalidade de uma lei não suspende a sua obrigatoriedade para ninguém, cidadãos, tribunais e administração.
Desmontado o argumento da inconstitucionalidade, o Governo regional veio invocar de seguida a questão dos custos financeiros do cumprimento da lei. Porém, trata-se de um argumento ainda mais "descalço" do que o argumento da inconstitucionalidade. Mesmo que os encargos não fossem negligenciáveis (como são efectivamente), as regiões autónomas têm obrigação de cumprir as leis da República através dos seus serviços, mesmo que haja eventuais custos adicionais. Trata-se de um ónus da autonomia regional. É para isso que as regiões autónomas dispõem de todos os impostos nelas cobrados (além das generosas transferências do Orçamento do Estado), nem sequer contribuindo para as despesas gerais da República, que só o continente paga. Acontece com a IVG como pode ocorrer com qualquer outra obrigação que venha a ser legalmente estabelecida (por exemplo, uma eventual vacina obrigatória contra o cancro do colo do útero).
De resto, o mesmo sucede com as demais áreas onde os serviços públicos foram regionalizados (quase todos), como por exemplo a educação. Assim, quando o ensino secundário se tornar obrigatório, é evidente que as regiões autónomas terão de arcar com os respectivos custos, sem poderem invocar esse facto como argumento para não cumprirem tal obrigação ou para os custos serem financiados pela República. O que é inadmissível é que o Estado pague a uma região autónoma o cumprimento de leis que elas estão obrigadas a executar.
Nem se invoque o paralelo das autarquias locais, em que as novas atribuições implicam a transferência de recursos financeiros adicionais. Não há nada de comum entre as duas situações. As autarquias locais só têm os recursos financeiros adequados ao nível das suas atribuições. Quando estas são ampliadas, devem os correspondentes recursos financeiros ser reforçados. No caso das regiões autónomas, elas são responsáveis por quase todos os serviços públicos, dispondo de todos os recursos fiscais nelas cobrados. Por isso, sempre que uma lei da República traz novos encargos públicos, eles devem ser satisfeitos respectivamente pelo Orçamento do Estado, no continente, e pelos orçamentos regionais, nas respectivas regiões autónomas.
A reacção dos órgãos de soberania da República ao desafio regional foi assaz distinta. O Governo da República tomou uma posição firme e sem tergiversações sobre a obrigação regional de execução lei. Já o Presidente da República preferiu passar sempre ao lado da questão política em causa. Depois de um despropositado comentário sobre o "recurso aos tribunais" por parte dos interessados, veio apelar a um "diálogo" entre as partes, como se o Governo da República tivesse algo a negociar (porventura, pagando?) com o governo regional fora-da-lei.
Tratando-se de um ostensivo desafio à autoridade da República, eis um tema em que não pode faltar a tomada de posição forte e inequívoca do Presidente da República. Os órgãos de soberania não podem "assobiar para o ar" perante um despautério destes, deixando criar um precedente de impunidade e complacência política de consequências intoleráveis.

(Público, Terça-Feira, 31 de Julho de 2007)

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