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16 de fevereiro de 2007

Para a história da liberdade em Portugal 

Por Vital Moreira

Como escrevi num depoimento para o jornal El País no sábado passado, o que se decidia no referendo não era somente saber se o aborto voluntário deveria, ou não, deixar de ser crime em Portugal. Tratava-se também um "teste civilizacional", entre a pré-modernidade ou a modernidade, entre a confusão ou a separação entre a ordem moral e a ordem penal, entre o império religioso ou o Estado laico. Como explicou, por sua vez, Eduardo Lourenço, estava em causa mais um confronto entre o Portugal rural, católico e conservador e o Portugal urbano, laico e liberal.
A expressiva vitória da despenalização no referendo, ainda por cima com uma participação muito superior à do referendo de 1998, significa um claro triunfo da modernidade em Portugal, da liberdade individual e autonomia moral sobre os dogmas religiosos, da laicidade do Estado na definição dos valores tutelados pela lei penal, do alinhamento do país com o paradigma europeu da autonomia feminina, da liberdade pessoal e dos limites da repressão penal.
De facto, este referendo teve vencedores e vencidos.
Venceu a despenalização limitada e moderada da interrupção voluntária da gravidez; o direito das mulheres a uma maternidade consciente e responsável, não sendo obrigadas a optar entre o aborto clandestino ou uma gravidez indesejada e uma maternidade forçada; os movimentos cívicos pelo "sim", que agregaram um largo espectro social, desde os liberais de direita aos militantes do BE; o PS e demais forças políticas de esquerda, bem como a ala liberal do PSD; os médicos e os católicos "pela escolha".
Se quisermos seleccionar um vencedor individual, ele é indubitavelmente José Sócrates. Não apenas pelo seu empenhamento na vitória do "sim" e na mobilização do PS para a campanha (que diferença em relação a 1998!), mas também pelo triunfo da sua estratégia de apostar no referendo e de se comprometer em respeitar o seu resultado, rejeitando sempre a ideia de votar a lei sem consulta popular (como insistia o PCP) e correndo o risco de uma grande derrota partidária e pessoal.
Perderam o referendo a repressão penal do aborto e o aborto clandestino; o "direito à vida do feto"; a Igreja Católica, e as suas organizações; o fundamentalismo dos movimentos do "não"; o CDS-PP e a demais direita política; o PSD conservador (com Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa em destaque); a Ordem dos Médicos, sobretudo o seu bastonário.
Se quisermos singularizar o grande perdedor, o galardão não pode deixar de ser atribuído à Igreja Católica. Não somente pelo protagonismo de muitos bispos e padres na luta pela manutenção da criminalização do aborto, mas também pelo domínio de personalidades alinhadas com a Igreja Católica nos partidos e movimentos do "não" e, sobretudo, pela omnipresença das suas numerosas organizações subsidiárias na campanha (Associação dos Médicos Católicos, Acção Católica, Opus Dei, etc.).
Também nisso o resultado do referendo constitui um feito histórico: desde a implantação da República que a Igreja Católica não sofria uma derrota política tão profunda e desta vez directamente às mãos do voto popular. Decididamente, ela deixou de comandar a consciência moral dos portugueses e as opções políticas do Estado. A separação entre o Estado e a religião deu um decisivo passo em frente. O Código de Direito Canónico deixou de ser lei constitucional entre nós.
Apesar de a geografia do voto referendário ter mantido a tradicional divisão político-cultural do país em dois mundos assaz distintos, desta vez, porém, o domínio do "sim" estendeu-se claramente para norte e para o interior. Foi no Sul e na Grande Lisboa que a vitória do "sim" teve mais expressão, como era de esperar. Mas foi no Centro e no Norte e nas ilhas que o "sim" subiu mais em relação a 1998, em alguns casos com diferenças superiores a 15 pontos percentuais. O triunfo nacional da despenalização também passou por aí, incluindo nos terrenos onde o "não" ganhou. Portugal está a mudar também quanto a esse "dualismo civilizacional".
Agora, vencido o referendo, há que implementá-lo legislativamente sem demora, não fazendo sentido manter em vigor uma norma penal que perdeu toda a legitimidade política. Já havia um projecto de lei do Partido Socialista aprovado na generalidade na Assembleia da República. Só resta aprová-lo na especialidade, introduzindo o procedimento de consulta e de reflexão prévia com que o PS se comprometeu durante a campanha do referendo. Depois, há que regulamentar a realização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) nos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde e nos serviços de saúde do sector privado, garantido a igualdade de acesso a todas as mulheres, independentemente dos seus rendimentos (ou falta deles).
O referendo não implica somente a alteração do Código Penal, mas também do Código Deontológico e do estatuto disciplinar da Ordem dos Médicos. É insustentável que a OM possa censurar deontologicamente actos médicos que deixaram de ser penalmente ilícitos, o que, aliás, foi utilizado de forma obscena pelos médicos opositores à despenalização durante a campanha do referendo. Tal como sucedeu em França, a Ordem deve proceder obrigatoriamente a essa modificação. O Código Deontológico e Disciplinar da OM não pode replicar o da associação dos médicos católicos. Os médicos contrários à legalização da IVG podem seguramente invocar o direito à objecção de consciência; mas não devem poder fazê-lo com base numa disposição deontológica sectária imposta a toda a gente.
Como instituições públicas que são, as ordens profissionais não podem considerar profissionalmente ilícito aquilo que a lei explicitamente considera lícito. É tempo de desconfessionalizar e de "des-salazarar" a Ordem dos Médicos.

(Público, terça-feira, 13 de Fevereiro de 2007)

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