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26 de fevereiro de 2007

Revolução na função pública 

Por Vital Moreira

Anda por aí uma discussão sobre as "funções nucleares do Estado", a propósito da definição dos serviços públicos onde deve manter-se o tradicional regime de emprego da função pública (FP) e não o do contrato individual de trabalho (CIT), que agora se pretende tornar o regime-regra na Administração Pública.
Importa, porém, ver a questão em termos mais amplos. Faz sentido estender ao sector público, em geral, o regime do contrato individual de trabalho e das relações colectivas de trabalho previsto no Código do Trabalho? E, nesse caso, justifica-se excluir determinadas funções estaduais desse regime, mantendo nelas o regime da função pública?
Tradicionalmente, nos sistemas administrativos de tipo francês, os servidores do Estado e demais entidades públicas não tinham o mesmo regime dos trabalhadores do sector privado. Assim sucedia entre nós. Os funcionários públicos tinham um regime definido por lei, e não por contrato. Eram nomeados, e não contratados. Gozavam de regalias específicas face aos trabalhadores do sector privado em numerosos aspectos, como, por exemplo, segurança absoluta no emprego, aposentação, horário de trabalho, férias, faltas, assistência na doença (ADSE). Antigamente, essas regalias tinham como contrapartida a restrição ou privação de certos direitos, como direitos sindicais, direito à greve, liberdade de expressão, obrigação de residência, etc. Porém, quando essas limitações desapareceram, com algumas excepções (em Portugal, em consequência do 25 de Abril e da Constituição de 1976), só ficaram as regalias.
No entanto, desde há muito que o regime da função pública deixou de se aplicar a todos os trabalhadores do sector público. Primeiro, foram os trabalhadores das empresas públicas, quando estas surgiram, aplicando-se-lhes o regime laboral comum. A distinção passou então a ser entre o sector público administrativo (SPA), onde vigorava o regime da função pública, e o sector público empresarial (SPE), onde valia o regime do contrato individual de trabalho. Porém, a partir dos anos 80 do século passado, o regime do CIT começou a ser aplicado também em alguns institutos públicos (administração indirecta do Estado), tendo-se multiplicado esses casos desde então, sempre numa base ad hoc, sem nenhuma lei geral que definisse as fronteiras entre os dois regimes.
Até que se chegou a 2004, quando a lei nº 23/2004, de 22 de Junho, veio permitir (mas não impor) a generalização da aplicação do CIT no sector público administrativo (embora com algumas especificidades), ressalvando somente as funções que impliquem "poderes de autoridade", que a lei se absteve, porém, de identificar. Do que se trata agora, portanto, é de clarificar as fronteiras da aplicação própria dos dois regimes e de proceder à revisão da referida lei.
Entretanto, há que ter em conta dois pontos que hoje são relativamente pacíficos. Por um lado, a manutenção do regime "estatutário" da função pública (nomeação vitalícia, etc.) não justifica a conservação das regalias injustificadas a ele associadas. Nos últimos tempos, têm sido tomadas medidas de aproximação dos dois regimes (por exemplo, segurança social), as quais devem prosseguir até onde seja justificado (por exemplo, não se vê por que é que os funcionários públicos hão-de ter um horário de trabalho menor, férias mais prolongadas ou um regime de faltas mais favorável). Por outro lado, a aplicação do regime do contrato individual de trabalho na Administração Pública não pode deixar de implicar certas adaptações (em matéria de recrutamento, de incompatibilidades e acumulações, de contratação colectiva, etc.), de modo a respeitar os princípios constitucionais da igualdade de acesso, da imparcialidade e da prossecução do interesse público.
A generalização do regime do CIT na Administração Pública tem que ver sobretudo com a aplicação da lógica da gestão privada no sector público, ao abrigo da doutrina da "nova gestão pública". Do que se trata é de estender ao sector público as regras de autonomia de gestão, responsabilidade dos gestores, flexibilidade, contratualização, diferenciação de remunerações de acordo com o desempenho e o mérito, etc. No entanto, essa importação do Código do Trabalho para a Administração Pública tem de compatibilizar-se, por um lado, com a "garantia institucional" da função pública (que só poderá ser eliminada mediante revisão constitucional) e, por outro lado, com as referidas adaptações, tornadas necessárias para assegurar o respeito de certos princípios constitucionais, que são válidos para a Administração Pública em geral.
Está por fazer um estudo do impacto da aplicação do CIT na Administração Pública. De facto, apesar das suas vantagens, ela não é isenta de riscos. Primeiro, ela pode levar a uma excessiva fragmentação dos regimes de trabalho na Administração Pública, conforme a força sindical de cada sector e a capacidade negocial dos gestores públicos, o que pode tornar necessário um apertado controlo central do Ministério das Finanças. Segundo, há indícios de que ela pode provocar uma sensível elevação das remunerações (e regalias complementares) dos quadros médios e superiores, aumentando por isso a factura orçamental com o pessoal. Terceiro, uma vez que a ampliação do CIT não pode ser imposta aos actuais funcionários públicos, a adopção daquele vai implicar, durante muitos anos, uma coabitação de dois regimes diferentes para os mesmos perfis funcionais em todos os serviços administrativos, o que não favorece propriamente uma gestão do pessoal isenta de atritos.
(Público, terça-feira, 20.02.2007)

16 de fevereiro de 2007

Para a história da liberdade em Portugal 

Por Vital Moreira

Como escrevi num depoimento para o jornal El País no sábado passado, o que se decidia no referendo não era somente saber se o aborto voluntário deveria, ou não, deixar de ser crime em Portugal. Tratava-se também um "teste civilizacional", entre a pré-modernidade ou a modernidade, entre a confusão ou a separação entre a ordem moral e a ordem penal, entre o império religioso ou o Estado laico. Como explicou, por sua vez, Eduardo Lourenço, estava em causa mais um confronto entre o Portugal rural, católico e conservador e o Portugal urbano, laico e liberal.
A expressiva vitória da despenalização no referendo, ainda por cima com uma participação muito superior à do referendo de 1998, significa um claro triunfo da modernidade em Portugal, da liberdade individual e autonomia moral sobre os dogmas religiosos, da laicidade do Estado na definição dos valores tutelados pela lei penal, do alinhamento do país com o paradigma europeu da autonomia feminina, da liberdade pessoal e dos limites da repressão penal.
De facto, este referendo teve vencedores e vencidos.
Venceu a despenalização limitada e moderada da interrupção voluntária da gravidez; o direito das mulheres a uma maternidade consciente e responsável, não sendo obrigadas a optar entre o aborto clandestino ou uma gravidez indesejada e uma maternidade forçada; os movimentos cívicos pelo "sim", que agregaram um largo espectro social, desde os liberais de direita aos militantes do BE; o PS e demais forças políticas de esquerda, bem como a ala liberal do PSD; os médicos e os católicos "pela escolha".
Se quisermos seleccionar um vencedor individual, ele é indubitavelmente José Sócrates. Não apenas pelo seu empenhamento na vitória do "sim" e na mobilização do PS para a campanha (que diferença em relação a 1998!), mas também pelo triunfo da sua estratégia de apostar no referendo e de se comprometer em respeitar o seu resultado, rejeitando sempre a ideia de votar a lei sem consulta popular (como insistia o PCP) e correndo o risco de uma grande derrota partidária e pessoal.
Perderam o referendo a repressão penal do aborto e o aborto clandestino; o "direito à vida do feto"; a Igreja Católica, e as suas organizações; o fundamentalismo dos movimentos do "não"; o CDS-PP e a demais direita política; o PSD conservador (com Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa em destaque); a Ordem dos Médicos, sobretudo o seu bastonário.
Se quisermos singularizar o grande perdedor, o galardão não pode deixar de ser atribuído à Igreja Católica. Não somente pelo protagonismo de muitos bispos e padres na luta pela manutenção da criminalização do aborto, mas também pelo domínio de personalidades alinhadas com a Igreja Católica nos partidos e movimentos do "não" e, sobretudo, pela omnipresença das suas numerosas organizações subsidiárias na campanha (Associação dos Médicos Católicos, Acção Católica, Opus Dei, etc.).
Também nisso o resultado do referendo constitui um feito histórico: desde a implantação da República que a Igreja Católica não sofria uma derrota política tão profunda e desta vez directamente às mãos do voto popular. Decididamente, ela deixou de comandar a consciência moral dos portugueses e as opções políticas do Estado. A separação entre o Estado e a religião deu um decisivo passo em frente. O Código de Direito Canónico deixou de ser lei constitucional entre nós.
Apesar de a geografia do voto referendário ter mantido a tradicional divisão político-cultural do país em dois mundos assaz distintos, desta vez, porém, o domínio do "sim" estendeu-se claramente para norte e para o interior. Foi no Sul e na Grande Lisboa que a vitória do "sim" teve mais expressão, como era de esperar. Mas foi no Centro e no Norte e nas ilhas que o "sim" subiu mais em relação a 1998, em alguns casos com diferenças superiores a 15 pontos percentuais. O triunfo nacional da despenalização também passou por aí, incluindo nos terrenos onde o "não" ganhou. Portugal está a mudar também quanto a esse "dualismo civilizacional".
Agora, vencido o referendo, há que implementá-lo legislativamente sem demora, não fazendo sentido manter em vigor uma norma penal que perdeu toda a legitimidade política. Já havia um projecto de lei do Partido Socialista aprovado na generalidade na Assembleia da República. Só resta aprová-lo na especialidade, introduzindo o procedimento de consulta e de reflexão prévia com que o PS se comprometeu durante a campanha do referendo. Depois, há que regulamentar a realização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) nos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde e nos serviços de saúde do sector privado, garantido a igualdade de acesso a todas as mulheres, independentemente dos seus rendimentos (ou falta deles).
O referendo não implica somente a alteração do Código Penal, mas também do Código Deontológico e do estatuto disciplinar da Ordem dos Médicos. É insustentável que a OM possa censurar deontologicamente actos médicos que deixaram de ser penalmente ilícitos, o que, aliás, foi utilizado de forma obscena pelos médicos opositores à despenalização durante a campanha do referendo. Tal como sucedeu em França, a Ordem deve proceder obrigatoriamente a essa modificação. O Código Deontológico e Disciplinar da OM não pode replicar o da associação dos médicos católicos. Os médicos contrários à legalização da IVG podem seguramente invocar o direito à objecção de consciência; mas não devem poder fazê-lo com base numa disposição deontológica sectária imposta a toda a gente.
Como instituições públicas que são, as ordens profissionais não podem considerar profissionalmente ilícito aquilo que a lei explicitamente considera lícito. É tempo de desconfessionalizar e de "des-salazarar" a Ordem dos Médicos.

(Público, terça-feira, 13 de Fevereiro de 2007)

11 de fevereiro de 2007

Um teste civilizacional em Portugal 

Por Vital Moreira

1. Pela segunda vez em 10 anos os portugueses são chamados a decidir em referendo se querem ou não a despenalização do aborto voluntário até às 10 semanas, modificando para isso o Código Penal, que considera em geral o aborto como crime, punindo-o com uma pena de prisão até três anos. Em 1998, embora por escassa maioria e com baixíssima participação no referendo, os portugueses rejeitaram a despenalização.
Desde 1984, a proibição criminal do aborto conhece três excepções, relacionadas com o grave perigo para a vida ou saúde da mulher grávida, com a doença ou malformação do feto e com a violação. Contudo, diferentemente do que sucedeu em Espanha (talvez por a formulação da lei portuguesa ser mais restrita do que a espanhola), as excepções legais à ilicitude penal do aborto foram interpretadas e aplicadas de forma muito estrita. Por isso, essas excepções, embora tenham resolvido as situações mais dramáticas (realizam-se umas centenas de abortos legais por ano), não permitiram nenhuma mudança significativa no panorama da legalização da interrupção voluntária da gravidez e da luta contra o aborto clandestino.
As consequências da punição penal do aborto são incontestáveis. Por um lado, segundo os dados disponíveis, o aborto clandestino atinge cerca 20000 casos por ano, em condições muitas vezes inseguras (salvo para a mulheres que rumam a Mérida e a Badajoz para realizarem o aborto em clínicas espanholas); são vários milhares por ano os casos de abortos clandestinos mal feitos que acabam no SNS; há registo de várias mulheres mortas em consequência de abortos mal sucedidos. Por outro lado, apesar de em geral não haver perseguição criminal do aborto, há sempre o risco de isso suceder. Desde 1998 houve vários julgamentos e condenações, submetendo as mulheres e os participantes de abortos ao estigma e à humilhação pública.

2. As razões contra a proibição penal do aborto são concludentes em Portugal. Ela não goza do mínimo de consenso social que deve fundamentar a lei penal num Estado de direito democrático, sendo evidente que a generalidade das pessoas não denuncia nem deseja ver julgado o aborto. Não consegue os seus fins de prevenção social do aborto, dados os impressionantes números de abortamentos clandestinos. Não protege a vidas e a saúde das mulheres que não desejem conservar uma gravidez indesejada, vistos os números de casos clínicos e de mortes pós-abortivas. Não garante o direito das mulheres a uma maternidade consciente, constrangendo-as a manterem uma gestação não querida quando não conseguem superar o receio da perseguição e da punição criminal.
Em Portugal, tal como nos demais países que ainda criminalizam o aborto, as mulheres que sejam vítimas de gravidez indesejada (por acidente, ignorância, erro, imprevidência, etc.), só podem optar entre o aborto clandestino e a maternidade forçada. Ao fim e ao cabo, a proibição penal do aborto limita-se a tutelar por via penal o paradigma moral ou religioso de uma parte da sociedade, forçando todo as demais pessoas a conformarem-se com ela ou a sofrerem as consequências penais.

3. O que é que mudou desde o referendo à despenalização do aborto de 1998, para admitir que o resultado pode ser diferente desta vez?
Em primeiro lugar, hoje é muito mais evidente do que há nove anos que a repressão penal do aborto não só não serve para impedir ou dissuadir os abortos, como tem efeitos muito perversos no plano da dignidade, da liberdade, da saúde e mesmo da vida das mulheres, bem como na credibilidade e autoridade da lei penal.
Em segundo lugar, é agora mais favorável ao alinhamento de forças políticas. Em 1998, devido à posição do seu secretário-geral de então (António Guterres, um católico que tomou posição contra a despenalização), o PS manteve-se quase à margem do referendo; desta vez, a começar pelo seu secretário-geral, José Sócrates, o PS resolveu assumir toda a sua responsabilidade moral e política na despenalização. Em 1998, o PSD, o partido de centro-direita, alinhou oficialmente com o "não", em consonância com a direita e a extrema-direita; desta vez, porém, o PSD não tem posição oficial, o que permitiu que vários dos seus deputados, dirigentes e militantes se manifestem a favor da despenalização e participem activamente na respectiva campanha.
Por último, também aumentou a contestação social à punição penal do aborto, mesmos nos sectores tradicionalmente hostis à despenalização. Diferentemente do que se passou em 1998, agora é possível encontrar na luta pela despenalização significativos grupos de liberais de direita, de católicos e de médicos, contrariando as respectivas obediências políticas e institucionais, respectivamente os partidos de direita, a Igreja Católica e a Ordem dos Médicos.
Será que essas mudanças bastam para garantir desta vez o triunfo da despenalização? É provável mas não é seguro. Em contrapartida, as forças mais conservadoras, lideradas e organizadas pela Igreja católica, incluindo o cardeal de Lisboa e muitos bispos, bem como as suas organizações leigas, redobraram e aprofundaram a sua militância contra a despenalização, não revelando aliás excessivos escrúpulos nos meios e métodos utilizados, incluindo o terrorismo verbal (comparação do aborto ao terrorismo e à pena de morte) e a utilização dos espaços de culto e das instituições sociais e educativas a seu cargo.

4. O referendo deste domingo em Portugal não se restringe à despenalização do aborto. É também um teste de civilização, entre a pré-modernidade ou a modernidade, entre a confusão ou a separação entre a ordem moral e a ordem penal, entre a submissão ao dogma moral ou a liberdade e autonomia pessoal, entre o império religioso ou o Estado laico.
A rejeição da despenalização do aborto, nos termos equilibrados e moderados propostos no referendo, não significa somente adiar a solução do aborto clandestino por mais um geração; significará também o cancelamento de qualquer avanço noutros campos da emancipação pessoal face ao atavismo moral e religioso (educação sexual, direitos das mulheres, não discriminação por razões de orientação sexual, etc.). A vitória da despenalização significará o triunfo definitivo da modernidade de Portugal, da liberdade individual e autonomia moral sobre os dogmas religiosos, da laicidade do Estado na definição dos valores tutelados pela lei penal, do alinhamento do país com o paradigma europeu da autonomia feminina, da liberdade pessoal e dos limites da repressão penal.

[Versão original em Português do artigo publicado no El País, sábado, 9 de Fevereiro de 2007, com o título "Una prueba de civilización"]

Os filhos do Código Penal 

Por Vital Moreira

Num dos recentes cartazes da campanha dos opositores à despenalização do aborto proclama-se que o voto contra "ainda vai a tempo de salvar muitas vidas". Mas a ideia de que a ameaça de repressão penal pode ser um meio eficaz de impedir abortos e um instrumento legítimo para obrigar mulheres a levar por diante gravidezes indesejadas e a gerar filhos não queridos constitui um testemunho da desumana e intolerante sujeição ao dogma e ao preconceito por parte dos defensores da situação vigente.
Em primeiro lugar, todos os indicadores sociológicos existentes mostram que a condenação penal do aborto não constitui um antídoto adequado na luta contra o aborto e nenhuma demonstração convincente comprova que a despenalização desencadeia uma onda duradoura de aumento dos abortos nos países onde aquela ocorreu. Se há alguma coisa acerca da qual existe um amplo consenso sociológico é que, seja lícita ou ilícita, a decisão de abortar nunca é tomada de ânimo leve, sendo sempre uma situação de grande compulsão psicológica. Não é a ameaça de punição penal que pode servir de dissuasor dessa decisão, nem é a despenalização que a pode banalizar.
Por um lado, os dados disponíveis respeitantes à situação portuguesa mostram que, apesar da proibição penal, se praticam muitos milhares de abortos todos os anos, o que aliás condiz com as informações respeitantes a outros países onde vigora idêntica proibição. Por outro lado, mesmo admitindo que num primeiro momento a despenalização possa criar algum aumento do número de abortos - para além da simples revelação de números anteriormente desconhecidos relativamente aos abortos clandestinos -, a experiência comparada aponta vários casos (Holanda, Alemanha, por exemplo) de diminuição da taxa de aborto no médio e no longo prazo, fruto de maior empenhamento nas políticas de educação sexual e de contracepção e de planeamento familiar, que a despenalização normalmente arrasta consigo.
Em segundo lugar, ainda que fosse de admitir algum aumento da taxa de abortos em consequência da despenalização, pelo menos numa primeira fase, sempre haveria que saber se essa consequência negativa não é amplamente compensada pelo fim dos consabidos malefícios do aborto clandestino, em termos de risco para a saúde física e psíquica das mulheres. Se houvesse algumas dúvidas, os dados oficiais divulgados entre nós sobre o número de mulheres que tiverem de recorrer ao serviços oficiais de saúde para completar abortos mal sucedidos ou para tratar as suas sequelas - incluindo vários casos fatais - são mais do que suficientes para mostrar que os possíveis efeitos negativos da despenalização em termos de eventual aumento de abortos podem e devem ser sopesados com os ganhos em termos de saúde física e psíquica dos muitos milhares de mulheres que, por causa da condenação penal e por razões de ignorância ou de falta de recursos económicos, têm de realizar o aborto sem as adequadas condições de segurança.
Em terceiro lugar, ao contrário do que pretendem os adversários da despenalização, esta não só não impede o uso do aconselhamento e da persuasão médica e psicológica para evitar abortos, como até favorece essa possibilidade. É evidente que, no actual estado de clandestinidade do aborto, a decisão de abortar é quase sempre solitária e desamparada, sem lugar para uma ponderação informada e apoiada. Diversamente, a despenalização e legalização proporcionarão condições para um aconselhamento prévio, que a lei deve, aliás, tornar obrigatório, como parece ser consenso dos defensores da despenalização. Por isso, quando certos movimentos do "não" invocam o número de casos de sucesso na persuasão de mulheres a desistirem de uma intenção de aborto, há que dizer que eles teriam muito melhores condições de êxito na sua missão com a despenalização acompanhada de aconselhamento prévio. Só não poderiam contabilizar a seu favor os casos de desistência por efeito da ameaça penal...
Por último (mas talvez o mais importante), mesmo que se concedesse, a benefício de argumentação, que há mulheres que renunciam a um aborto por causa do receio das consequências penais, a questão que se coloca é a de saber se isso pode justificar a manutenção de uma gravidez indesejada e a gestação de um filho não querido. Entre os direitos mais elementares das pessoas há-de contar-se o direito a uma maternidade e a uma paternidade consciente e responsável. Com que direito, então, é que a sociedade (ou um parte dela), em nome de um certo paradigma moral pode impor a outrem, vítima de uma gravidez por acidente ou por inadvertência ou fruto de uma relação afectiva entretanto gorada, a manutenção dessa gravidez ocasional e a gestação de um filho indesejado? Os filhos devem ser fruto de uma relação afectiva entre os progenitores e de uma decisão de maternidade livre e responsável, e não consequência forçada de uma gravidez por acidente e do Código Penal combinados.
A desumana insensibilidade com que os adversários da despenalização convertem o direito à maternidade e à paternidade numa obrigação absoluta - incluindo em caso de gravidez indesejada ou, mesmo, insustentável, em termos afectivos, psicológicos, familiares, económicos, sociais, etc. - revela uma dose de intolerância e de incompreensão que só o dogmatismo e o fundamentalismo religioso ou moral podem justificar. É certamente louvável que muita gente se sinta impelida, pelas suas crenças ou convicções, a tudo sacrificar para manter uma gravidez indesejada e a gerar um filho que se não quis. Pode mesmo aceitar-se que essas pessoas desejem transformar as suas crenças e convicções em norma moral geral para todos os outros e usem de todo o proselitismo nesse sentido. O que não é aceitável é que pretendam impor essa norma moral como norma oficial universal, ainda por cima imposta por via penal, sob ameaça de prisão.
Despenalizar o aborto não impede nenhuma mulher de preservar "a outrance" uma gravidez indesejada, porque a isso se sente compelida por razões religiosas ou filosóficas. Apenas impede que esse sacrifício seja imposto à força a outras mulheres que não compartilhem desse constrangimento religioso ou moral. Do que se trata é de saber se as primeiras podem impor às segundas as suas convicções morais e religiosas, não com a sua capacidade de persuasão, mas sim com a ajuda do Código Penal e a cominação de prisão. É essa a diferença entre o "sim" e o "não". Professor universitário

(Público, terça-feira, 6 de Fevereiro de 2007)

5 de fevereiro de 2007

IVG: SIM, pela vida 

por Ana Gomes

No dia 11 de Fevereiro vou votar SIM. Determinadamente. Porque levo na cabeça uma cena que não julgava já possível em Portugal, no século XXI: a daquela mãe que chorava, num corredor do Tribunal de Aveiro em 2004, depois de me contar o terror que vivia há anos, desde que a filha adolescente, à saída de um consultório médico, fora arrastada por dois polícias para dentro de um carro, levada ao hospital e forçada a submeter-se a exames ginecológicos. Na sala ao lado estava a filha sentada no banco dos réus, acusada de aborto - seis anos depois, já casada e gravidíssima. A mãe ficara a saber, no tribunal, que toda a família fora alvo de escutas telefónicas anos a fio. Mas o mais opressor era o medo: que o genro, vizinhos e parentes na vilória onde moravam, descobrissem que estavam ali, tratadas como infames criminosas. «Tenho a vida destroçada, o meu marido já não aguenta mais: ontem insistia que nos enfiássemos os três no carro e nos lançássemos por uma ribanceira abaixo!...»
O que me determina é a vontade de acabar com a monstruosa violência do Estado e da sociedade contra mulheres e famílias como aquela. Um Estado que manda fragatas contra navios com gente que vem para informar. Um Estado que selectivamente, contra mulheres pobres, se lembra às vezes de tentar impôr a lei. Um Estado que incentiva a hipocrisia social, agarrado a uma lei que ninguém respeita.
É o sofrimento atroz, irreparável, de milhares de portuguesas e portugueses o que está em causa. Não podemos permitir que continue. Porque o que vai ser referendado no dia 11 de Fevereiro não é, de facto, o aborto. É o Código Penal. O aborto, esse vai continuar a fazer-se. A questão é como, quando e quanto.
Como: se continua clandestinamente, condenando as portuguesas pobres a vexames e inseguranças, incluindo as do vão-de-escada (as outras abortam sem problemas, no estrangeiro ou em clínicas nacionais que dão outros nomes à intervenção). Ou se, pelo contrário, graças ao SIM, a IVG passa a ser feita em estabelecimento de saúde autorizado, assegurando a todas as mulheres condições de higiene e de acompanhamento médico que não agravem a dor, física e psicológica.
Quando: se, ganhando o SIM, se faz a IVG só no início da gravidez, até às 10 semanas, ou se se continua a fazer descontroladamente, até muito mais tarde. Não, não se trata de referendar a ?liberalização? do aborto, mas sim de despenalizar, isto é, de descriminalizar a IVG até às dez semanas. Porque liberalizado já está, de facto, o aborto: em roda livre, como tudo o que é clandestino e ninguém controla - nem locais ou condições em que é praticado e sem exigir reflexão.
Quanto: se, com a vitória do SIM, vamos progressivamente reduzir o número de abortos e aumentar a maternidade consciente em Portugal. Ou se vamos continuar a deixar o aborto e o negócio ilegal proliferar. Não é por a IVG passar a ser legal até às dez semanas que vão multiplicar-se os abortos - nenhuma mulher passará a gostar de se submeter a tal operação. Pelo contrário, a prazo, a despenalização fará diminuir os abortos, como provam as estatísticas dos nossos vizinhos europeus. Menos abortos e mais nascimentos porque com o SIM vai haver aconselhamento médico para todas as mulheres, incluindo as pobres e pouco informadas.
O que está em causa no referendo de 11 de Fevereiro também não tem a ver com as crenças «científicas» ou religiosas sobre o início da vida humana. O SIM não visa impor a ninguém uma conduta contrária às suas convicções - quem tiver objecções de consciência ou religiosas contra a IVG, que a não pratique. A actual lei já despenaliza a IVG em certos casos. Quem sustenta o «direito à vida» dos embriões devia, em coerência, assumir a oposição a tudo o que mata, maxime a guerra, quaisquer guerras. (Mas onde estavam muitos dos vociferantes do «não», quando foi invadido o Iraque, por exemplo?)
O referendo do dia 11 não versa também sobre o financiamento da IVG. Particularmente repulsiva, neste aspecto, é a campanha de quem se diz «pró-vida» e, afinal, bem longe de considerações éticas, recorre a argumentos economicistas e demagógicos.
Pelo meu lado, não quero contribuir com os meus impostos para mais violações dos direitos humanos de portuguesas, cometidos por polícias, pessoal hospitalar e magistrados que as submetem a perseguições, exames médicos forçados e interrogatórios. E não quero continuar a pagar a governantes, políticos e agentes do Estado que, por acção ou omissão, colaboram na humilhação, devassa e aviltamento de mulheres que optam por abortar no início de uma gravidez não desejada.
Este referendo não é a favor ou contra o aborto, pois ninguém, em perfeito juízo, pode ser «adepto» do aborto. Este referendo é sobre uma lei que oprime as mulheres e não evita o aborto.
Votar SIM, é votar pela liberdade, mas contra a «liberalização» do aborto. Votar SIM é votar contra o aborto clandestino. Votar «SIM» é votar pela maternidade e paternidade consciente, desejada.
Eu voto SIM. Pela vida.

(publicado no PÚBLICO, em 5.2.2007)

4 de fevereiro de 2007

Espaço de manobra... perigosa 

por Ana Gomes

No passado dia 11 de Janeiro, a China lançou um míssil de médio alcance contra um seu satélite obsoleto. Foi o primeiro teste de uma arma anti-satélite desde o fim da Guerra Fria.
Pequim agiu por razões estratégicas ligadas à crescente rivalidade com os EUA: teme que o projecto faraónico de defesa anti-míssil americano neutralize de vez o arsenal chinês de mísseis balísticos; e, ao mesmo tempo, quer demonstrar que, em caso de confrontação militar sobre Taiwan, tem os meios necessários para contrariar a superioridade dos EUA no espaço.
Mas a verdade é que o teste chinês representa uma escalada perigosa e ameaçadora para todo o mundo, tanto mais que o teste foi levado a cabo numa órbita baixa - a cerca de 800km da Terra - onde circulam mais de 120 satélites pertencendo a dezenas de países e com funções tão variadas como vitais. Os milhares de estilhaços do satélite destruído estão agora a voar a velocidades estonteantes pelo espaço e ameaçam seriamente os equipamentos que lá estão. Lembro que o PoSAT-1 - o primeiro satélite português, lançado em 1993 - foi precisamente colocado numa órbita à volta dos 800km, e que o projecto europeu Galileo se baseia em constelações de satélites em várias órbitas.
Uma corrida ao armamento no espaço ameaça o nosso modo de vida: como comunicamos, como viajamos, como planeamos as nossas economias, enfim, como funcionamos no mundo globalizado: tudo isto já depende e dependerá cada vez mais de satélites e, por consequência, da defesa do uso pacífico do espaço.
Defensores da Paz e do Direito Internacional há anos que sustentam que o Tratado do Espaço Exterior, acordado em 1967 e que só exclui a colocação de Armas de Destruição Maciça no espaço, precisa de ser reforçado com uma proibição total e categórica de toda e qualquer arma no espaço. Porém, nos EUA, o país que mais depende do espaço para fins civis e militares, falcões do complexo militar-industrial (denunciado pelo Presidente Eisenhower em 1961) negam essa necessidade, a pretexto de não haver corrida ao armamento no espaço. E, ao mesmo tempo, vão desenvolvendo tecnologias e doutrinas para o utilizar militarmente para além do que é aceite como "normal" (ou seja, para observar, espiar e guiar mísseis). Tradicionalmente a doutrina espacial americana defendia o uso pacífico do espaço, mas a nova Estratégia Espacial Nacional da Administração Bush exige acesso "ilimitado" do espaço para os EUA. Como a potência que goza de maior superioridade no espaço, e que, por isso, mais tem a perder se ele se tornar em campo de batalha, não faz sentido a recusa dos EUA em ancorar legalmente o status quo (que lhe é favorável). E o pior é que, com a nova doutrina, Washington está, sem querer, a incentivar a corrida ao armamento do espaço. Como o teste chinês justamente demonstra.
A China tinha, até agora, uma reputação de potência espacial emergente responsável, exigindo que se negociasse nas Nações Unidas um Tratado banindo a presença de armas no espaço. Mas com este teste provocador, Pequim perdeu a credibilidade.
Como se diz em África: quando dois elefantes se disputam, é a relva que sofre. Todos os países dependem hoje do uso pacífico do espaço, enquanto só algumas potências têm a capacidade de militarizá-lo. Tal como na proliferação nuclear, será apenas uma questão de tempo até que outras lhes sigam o (mau) exemplo, com riscos catastróficos para todo o mundo.
O teste chinês só teve um mérito: veio expor a urgência de protegermos o espaço, propriedade comum de toda a Humanidade. É tempo da UE acordar e agir: não há espaço para mais manobras perigosas.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 2.2.2007)

3 de fevereiro de 2007

A estratégia da confusão 

Por Vital Moreira

O que é que mudou desde o referendo à despenalização do aborto de 1998, para admitir que o resultado pode ser diferente desta vez? A minha resposta é que muita coisa mudou e que as mudanças mais profundas não são as mais evidentes.
Para começar, é óbvio o realinhamento de forças no centro do espectro político, onde se decide no essencial o referendo. Em 1998, o PSD alinhou oficialmente com o "não", em consonância com a direita; e o PS, devido à posição do seu secretário-geral de então (Guterres), manteve-se quase à margem do referendo, deixando o protagonismo ao PCP e ao BE. Desta vez, o PSD não tem posição oficial, o que permitiu que vários dos seus deputados, dirigentes e militantes se manifestem a favor da despenalização e participem na respectiva campanha, enquanto o PS resolveu assumir toda a sua responsabilidade moral e política nesta questão.
A segunda mudança tem a ver com a indesmentível confirmação dos aspectos mais censuráveis da criminalização do aborto: (i) o Código Penal não serve para combater o aborto, pois os dados disponíveis revelam cifras preocupantes (dezenas de milhares por ano); (ii) não existe o mínimo consenso social sobre a repressão penal do aborto, que a generalidade das pessoas não denuncia nem deseja ver julgado; (iii) todavia, o Código Penal, além de clandestinizar o aborto, não deixa de fazer as suas vítimas, como mostram os vários casos de acusação, julgamento e condenação ocorridos desde 1998 (Maia, Aveiro, Setúbal, etc.). Hoje é muito mais evidente que a actual situação de repressão penal do aborto não só não serve para defender os fins da lei penal em geral, como tem efeitos colaterais muito perversos no plano da dignidade, da liberdade, da saúde e mesmo da vida das mulheres.
Mas o que há de notavelmente novo no actual referendo é a estratégia confusionista adoptada pelas forças opostas à despenalização, com o evidente propósito de lançar a maior barafunda possível sobre o que está em causa no referendo. São dois os principais instrumentos: primeiro, argumentar que a pergunta do referendo não é clara nem honesta, pois ela fala em despenalização, quando quer dizer liberalização; segundo, argumentar que, para resolver o problema penal do aborto, basta deixar de punir as mulheres que o efectuam, tendo-se multiplicado ultimamente declarações nesse sentido. No entanto, nenhum desses argumentos é procedente.
A pergunta do actual referendo é a mesma de 1998, tendo passado duas vezes no escrutínio do Tribunal Constitucional, que tem por missão verificar também se as perguntas submetidas a consulta popular são claras e não enviesadas. Como é que os partidários do status quo só descobriram agora que a pergunta é "capciosa"? A verdade é que a pergunta é mais do que clara. Quando se fala em "despenalização" de certa conduta, tanto no discurso leigo como na linguagem jurídico-penal, o que se pretende é retirá-la do âmbito do direito penal e do Código Penal, ou seja, da esfera dos crimes e das respectivas penas. Portanto, é evidente que a pergunta visa saber quem apoia, ou não, a desclassificação do aborto como crime, nos limites e condições da pergunta.
Mas não se trata de nenhuma "liberalização", como pretendem os críticos. Primeiro, porque a despenalização em causa só abrange as primeiras dez semanas de gestação, ou seja, menos de um terço do tempo normal de gravidez. Como regra, o aborto continuará a ser um ilícito criminal, salvo certas excepções, entre as quais entrará agora a interrupção da gravidez nas primeiras dez semanas. Segundo, mesmo nesse período, o aborto só passará a ser lícito, se realizado em estabelecimento de saúde legal, visto que o principal objectivo do referendo é pôr fim ao aborto clandestino. Terceiro, só a legalização proporcionará condições para fazer acompanhar a decisão de abortar de um mecanismo obrigatório de reflexão da mulher que o pretenda fazer.
A actual situação é que se traduz numa verdadeira liberalização clandestina do aborto, independentemente de prazos e do lugar da sua prática, bem como à margem de qualquer apoio ou ponderação serena da mulher grávida, que se vê frequentemente sozinha e desamparada na sua decisão. Os que criticam a suposta liberalização do aborto "a pedido" deveriam dar-se conta de que o que estão a condenar é a situação existente - ou seja, a que eles querem manter - e não a situação consubstanciada no "sim" ao referendo.
No entanto, a mudança mais surpreendente em relação ao referendo precedente tem a ver com a vaga de opositores à despenalização que agora se manifestam a favor da não punição das mulheres que abortam (com recurso a instrumentos como a suspensão do processo penal ou a invocação de "causas desculpabilizantes" automáticas). Alguns mais afoitos e irresponsáveis vão mesmo ao ponto de ser mais "liberais" do que os mais liberais, defendendo que as mulheres nunca devem ser punidas, quaisquer que sejam as circunstâncias e o estádio da gestação em que pratiquem a interrupção da gravidez! Deixando de lado estas propostas não sérias, o que é que mostra esta súbita e generalizada comiseração pelas mulheres que se sentem forçadas a interromper uma gravidez?
Descontando os casos de puro e rasteiro oportunismo, a principal ilação a retirar dessas posições é a de que muitos adversários da despenalização se deram conta de que a punição penal das mulheres que não desejam prosseguir uma gravidez indesejada já não é politicamente nem humanamente defensável e que, afinal, a defesa da vida intra-uterina tem de ser conciliada com os direitos e interesses legítimos das mulheres. Mas continuam agarrados ao dogma fundamentalista de que o aborto em si mesmo deve continuar a ser um crime.
Este contorcionismo conceptual tem, porém, duas consequências devastadoras. Primeiro, em termos de direito penal é um contra-senso manter um crime em que os principais responsáveis já não são criminalmente responsáveis. Segundo, essas soluções deslegitimam decididamente a justificação tradicional para a repressão penal do aborto, baseada na defesa da vida intra-uterina como valor ao qual deve ser sacrificada sempre a mulher grávida. De facto, como manter esse discurso, se afinal a "criminosa", ou seja, a mulher que aborta, fica isenta de qualquer punição? Terceiro, essas "soluções" não resolvem os problemas mais graves que a actual situação cria, ou seja, o estigma do crime (a mulher que aborta continua a ser "criminosa") e os malefícios do aborto clandestino e inseguro, em termos de risco para a saúde física e psíquica das mulheres. Pois é evidente que, se para as outras pessoas que sejam executantes ou "cúmplices" (médicos, enfermeiros, parteiras, maridos e namorados, etc.), o aborto continua a ser crime, como agora, então é evidente que de pouco ou nada vale esse arremedo de "despenalização" selectiva das mulheres.
Uma comparação com os discursos de há uma década, mostra que enquanto o discurso despenalizador (a favor do "sim"), apesar de politicamente mais plural, se mantém firme e consistente na defesa da despenalização do aborto até às dez semanas, independentemente do juízo individual de cada um sobre a sua censura moral ou religiosa (o que é totalmente legítimo) e sobre a necessidade de o combater, já o discurso adversário se tornou uma cacofonia desafinada e contraditória, onde a única coisa que resta é a compulsão para instrumentalizar o direito penal e a repressão criminal do Estado ao serviço de uma cruzada religiosa ou moral de uma parte da sociedade. Quando os adeptos do "não" à despenalização propriamente dita se sentem tentados a defender (ou a fingir) que também são a favor de uma qualquer "despenalização", então já abandonaram a protecção absoluta do "direito à vida do feto" e só lhes resta impor aos demais, de forma intolerante, os seus próprios códigos morais e religiosos (por mais legítimos que estes sejam).

(Público, Terça-feira, 30 de Janeiro de 2007)

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