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9 de outubro de 2006

Sobrevivências corporativas (2) 

Por Vital Moreira

Volto ao tema das sobrevivências corporativas na área da segurança social e dos cuidados de saúde. Na verdade, elas não se reduzem à ADSE, cuja situação abordei em artigo anterior. Longe disso. E também revelam a mesma capacidade de resistência à extinção que aquela.
Recordemos a situação de partida, à data do 25 de Abril. Antes de 1974, no regime corporativo do Estado Novo, os sistemas de Segurança Social e de cuidados de saúde, com excepção da função pública, eram incipientes, fragmentários e, sobretudo, estavam enquadrados na organização corporativa, através das caixas sindicais de previdência, que asseguravam simultaneamente cuidados de saúde e prestações sociais. A excepção a este panorama eram os funcionários públicos, que estavam fora da organização corporativa (não podiam sindicalizar-se, sequer) e a quem o Estado proporcionava um sistema de pensões (a Caixa Geral de Aposentações) e um sistema de cuidados de saúde (a ADSE), ambos de base contributiva, por serem financiados pelo menos em boa parte pelos seus beneficiários. Em qualquer caso, não havia nada de parecido com um serviço nacional de saúde, nem com um sistema geral de Segurança Social.
O 25 de Abril e a Constituição de 1976 vieram trazer uma revolução na esfera dos direitos sociais, da Segurança Social e dos cuidados de saúde (revolução de cujo alcance infelizmente tendemos a esquecermo-nos com excessiva facilidade). Primeiro, foram constitucionalmente reconhecidos e garantidos os direitos à Segurança Social e aos cuidados de saúde. Segundo, foram instituídos dois sistemas públicos destinados a garantir separadamente esses dois direitos a toda a gente (universalidade) e em todas as suas prestações (generalidade). Para a Segurança Social, optou-se por um sistema contributivo, com base em contribuições dos beneficiários para um fundo comum, para cobrir as pensões de velhice e as eventualidades de incapacidade, doença e desemprego. Para os cuidados de saúde optou-se por um sistema de tipo britânico, directamente suportado pelo orçamento do Estado, ou seja, pelos impostos.
Dessa forma, todas as pessoas passaram a estar virtualmente protegidas por sistemas universais de Segurança Social e de cuidados de saúde. O problema eram os mecanismos de tipo sindical-corporativo vindos do antecedente. Se a maior parte deles foram facilmente extintos e os seus beneficiários integrados nos dois sistemas públicos, já o mesmo não sucedeu onde aqueles regimes privativos ofereciam prestações especialmente atraentes ou pertenciam a profissões com especial poder sindical (caso dos empregados bancários) ou com especial influência social e política (caso dos jornalistas e dos advogados). A verdade é que, 30 anos depois da Constituição, subsistem esquemas de Segurança Social e de cuidados de saúde à margem dos respectivos sistemas públicos. Alguns misturam prestações sociais e cuidados de saúde, outros actuam apenas numa dessas vertentes.
Os problemas que essas situações suscitam não têm a ver somente de desconformidade com a Constituição (pelo menos inconstitucionalidade por omissão, na medida em que os beneficiários desses esquemas privativos não foram integrados nos referidos sistemas públicos universais). Há também o problema da igualdade, visto que alguns daqueles sistemas privativos (se não todos) se traduzem em claros privilégios profissionais. E há também, no caso da Segurança Social, as dificuldades criadas para a aplicação da norma constitucional da contagem de todo o tempo de actividade profissional, onde quer que tenha decorrido, para efeitos do cálculo das pensões, dada a mobilidade profissional hoje em dia existente. Por exemplo, no caso de um trabalhador bancário que venha de uma profissão onde descontava para o regime geral, sem porém ter constituído direito a pensão de reforma, não existe meio de contabilizar esse tempo de serviço na pensão a que tem direito do seu banco.
Mas existem situações ainda mais controversas, que são aquelas em que o Estado subsidia ou suporta parcialmente esses regimes privativos, como sucede com o sistema de Segurança Social e de cuidados de saúde privativo dos advogados e dos solicitadores (parcialmente alimentado por receitas de taxas de justiça) e com o regime de cuidados de saúde dos jornalistas, que têm um regime semelhante à ADSE, suportado directamente pelo Estado. Obviamente, existem profissões com afinidades electivas com o Estado...
A verdade é que o Estado tem pouca autoridade para extinguir esses regimes privativos, por duas simples razões. Por um lado, o próprio Estado manteve até ao início do corrente ano um regime privativo de pensões de reforma para os seus funcionários (a Caixa Geral de Aposentações) e continua a suportar o regime privativo de cuidados de saúde para os mesmos funcionários (a ADSE). Por outro lado, no caso dos cuidados de saúde, o Estado aproveitou os diversos subsistemas de saúde privativos para encaixar algumas receitas, fazendo-os pagar os cuidados de saúde que os seus beneficiários recebem no SNS (aos quais teriam direito na mesma, a título gratuito, como quaisquer cidadãos).
As objecções, constitucionais e outras, à existência destes sistemas privativos, nada têm a ver com a existência de mecanismos complementares dos sistemas públicos, que se adicionem a estes. Ninguém está impedido de subscrever um plano de reforma, nem um plano de saúde complementar, para beneficiar de um acréscimo de pensão ou para ter acesso a cuidados de saúde privados, mais prontos ou de melhor qualidade. Mas antes disso existe o direito de beneficiar do sistema geral de Segurança Social e o dever de contribuir para ele, bem como o direito de beneficiar gratuitamente (ou quase...) dos cuidados de saúde do SNS e de contribuir através dos seus impostos para o seu financiamento.
Do que se trata, afinal, nos regimes privativos existentes é do reconhecimento implícito de uma faculdade de opting out dos sistemas públicos, que no caso da saúde não dispensa da obrigação de contribuir para ele (visto que este é financiado por impostos), mas que mesmo aí pode justificar a reivindicação da saída do sistema quanto à própria obrigação de financiamento. Pois, se esses subsistemas libertam o SNS da prestação de cuidados de saúde ou pagam os cuidados que obtêm do SNS, por que é que os seus beneficiários não podem libertar-se do financiamento deste, quando já suportam financeiramente os encargos dos respectivos regimes privativos?
Quando a coerência dos sistemas é sacrificada à inércia ou ao oportunismo, os efeitos colaterais negativos são inevitáveis.

(Público, terça-feira, 3 de Outubro de 2006)

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