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4 de outubro de 2006

Irrelevante, a ONU ? 

por Ana Gomes

A 61ª Assembleia Geral da ONU averba já vários episódios grotescos: Chavez a chamar "diabo" a Bush; este "vendendo" a versão surreal de um Médio Oriente 'no bom caminho'; Ahmadinejad denunciando a injustiça no Iraque, mas ignorando Darfur, onde muçulmanos massacram muçulmanos, etc.... Mas também há intervenções esperançosas como a de Mahmoud Abbas, defendendo um governo de unidade nacional palestiniano que reconheça Israel e renuncie à violência. Ou de Tzipi Livni, a MNE israelita admitindo que os palestinianos "têm direito à liberdade e a existirem como nação soberana num Estado próprio". A cacofonia, o desencontro de mensagens, de prioridades e de perspectivas, constituem a razão de ser da ONU.

Desde a fundação, a ONU esteve sempre sob fogo. Mas, ao contrário das profecias desvalorizadoras de muitos cépticos - designadamente Bush e Blair, nas vésperas da invasão do Iraque - a ONU continua relevante e constitui até, cada vez mais, principal eixo de acção e fonte de legitimidade para qualquer iniciativa em questões de paz e segurança. De facto, nunca a ONU foi tão requisitada: em Julho de 2006 havia quase 73.000 capacetes azuis activos em diferentes regiões do planeta.

Recentemente, missões da ONU têm sido indispensáveis para assegurar a transição para a paz em países tão diversos como o (sul do) Sudão, o Líbano, a RD Congo, o Haiti, o Burundi, a Libéria e Timor-Leste. Só em Agosto passado, o Conselho de Segurança aprovou três resoluções (Líbano, Timor Leste e Darfur) que prevêm a colocação no terreno de mais 37.000 capacetes azuis - um aumento de 50%. Nada mau para uma instituição que há quem apresente como "inútil e ultrapassada".

O que isto demonstra não é a imperfeição do sistema da ONU (imperfeição óbvia e agravada pela ausência de reforma do Conselho de Segurança), mas sim a falta de alternativas à ONU como instrumento principal para procurar (sublinho o procurar) garantir a paz e a segurança globais. A não ser que se prefira a lei da selva ao direito internacional, a ausência de sistema (ou um sistema baseado na arbitragem do mais forte) a um sistema multilateral que, mesmo defeituoso, permita aos diferentes actores comunicarem para resolver conflitos e problemas.

Mesmo sem a noção abrangente de "segurança humana" (que implica combate à pobreza, subdesenvolvimento, pandemias, etc. em que a ONU é insubstituível), pode lamentar-se que as Nações Unidas não tenham conseguido pôr fim ao conflito israelo-palestiniano, impedido a invasão criminosa do Iraque, ou obrigado o Irão a interromper a corrida para a bomba nuclear. No entanto, é a ONU que, através do ACNUR, dá esperança a milhões de refugiados pelo mundo inteiro. É a UNRWA que minora trágicas consequências do conflito israelo-árabe, acorrendo a milhões de palestinianos; é a ONU que é chamada pelos EUA a coordenar o esforço internacional para tentar salvar o que resta do Iraque; é uma agência da ONU, a AIEA, a única fonte de avaliação credível para todos os actores da crise nuclear iraniana. Em todos estes focos de insegurança, a ONU faz o que pode em circunstâncias de tremenda adversidade. Não faz milagres. Porque, acima de tudo, depende da vontade, dos fundos e da influência dos seus Estados Membros. Principalmente dos que se sentam no Conselho de Segurança - e, entre estes, essencialmente, dos cinco Membros Permanentes. Que são também quem, há anos, realmente bloqueia a reforma do Conselho e, portanto, de todo o sistema.

Guerra e conflitos estão para ficar. Urge reformar a ONU, dar ao Conselho de Segurança mais representatividade, legitimidade e autoridade: disso depende a sua eficácia. Urge dotar as Operações de Manutenção de Paz de fundos e meios humanos para responder a tempo à procura crescente de capacetes azuis.

Tal como atacar a democracia a pretexto de que ela está 'podre' ignora a responsabilidade de todos em contribuir para a sua vitalidade, os ataques à 'utilidade' da ONU não passam de manobras de diversão de quem, realmente, está contra o multilateralismo eficaz.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 29/9/06)

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