<$BlogRSDUrl$>

16 de junho de 2006

TIMOR (DO)LOROSAE 

por Ana Gomes

Cheguei a Dili a 20 de Maio, ultimo dia do Congresso da FRETILIN (para que o meu partido, o PS, foi convidado, sem - como me foi doloridamente sublinhado - se fazer representar ou sequer enviar cortês mensagem de saudação). Queria estar lá nesse dia para as celebrações dos 4 anos da independência. Mas a cidade parecia abandonada, as ruas desertas. Ainda assim, à luz magnífica do pôr-do-sol, em frente ao Palácio do Governo, de janelas tapadas com plásticos e madeira a esconder parte dos vidros estilhaçados nos distúrbios de 28 de Abril, pude assistir a um concerto com vários grupos musicais timorenses juntando cerca de um milhar de jovens. Organizado pelo MNE Ramos Horta, que entusiasmou a assistência. Era para mostrar que havia governo, disse. Foi um dos dois sinais de governação que vi durante os dias que estive em Timor.

O outro foi na véspera de partir. A 24 de Maio, sentada na última fila de uma sala acanhada e soturna no Palácio das Cinzas, partilhei com timorenses e portugueses presentes a humilhação de ver as mais altas autoridades (PR, PM, Presidente do Parlamento e MNE), pela primeira vez desde há muito aparecendo unidas, transmitir ao corpo diplomático o pedido de envio urgente de forças estrangeiras para repor a lei e ordem em Timor Leste. Regressei no voo marcado, mas já tive de chegar ao aeroporto escoltada por GOES - ainda a insegurança não tinha atingido o descalabro anárquico que depois se viu. Que já se podia prever. E que podia ter sido evitado se uma solução constitucional para a crise política subjacente à quebra da segurança tivesse sido facilitada e rapidamente encontrada.

À hora a que escrevo, dia 31, ela continua a tardar e agrava-se até, num desesperante braço-de-ferro entre Presidente e Primeiro-Ministro. E assim tarda também o restabelecimento da lei e da segurança (Reinados, Salsinhas e deliquentes armados continuam à solta), por mais soldados estrangeiros que cheguem. E sobretudo continua a não haver governação em Timor-Leste, por muito que o Primeiro Ministro proclame ter tudo sob controlo. Não vale a pena tapar o sol com a peneira. E o pior é que, quanto mais demorar o desfecho político que permitirá ultrapassar esta trágica crise, mais se desgastam aos olhos do povo os líderes que ainda têm autoridade.

É preciso compreender e tirar consequências do se passou. Demitir dois ministros não chegará. A verdade é que a crise de segurança não veio só: evidenciou divergências profundas sobre a governação do país entre Presidente e Primeiro-Ministro, divergências que não beneficiaram o prestígio e autoridade de ambos e que abalaram a confiança da população nas instituições políticas. A legitimidade histórica e política do Presidente Xanana Gusmão é incontornável e as suas autoridade e capacidade de influência continuam inultrapassadas e, por isso, nunca deviam ter sido desaproveitadas. O sistema constitucional que Portugal imprudentemente exportou para Timor-Leste não facilita a resolução de conflitos de competências. O horizonte de eleições em 2007 também não favorece a acalmia de tensões. E o Congresso da FRETILIN só as agravou, evidenciando uma atitude de "estado de sítio": a votação de braço no ar só podia resultar nos perturbantes 97% de endosso ao líder. Que é o Primeiro Ministro que vinha alertando para tentativas de «golpe constitucional».

Contra a sua vontade e independentemente da qualidade da acção do seu Governo em vários domínios, o Primeiro Ministro tornou-se alvo da animosidade de demasiados sectores na sociedade timorense. Reconhecido como sério e competente pelos países doadores e tendo claramente o apoio do seu partido, o PM Alkatiri não foi, porém, capaz de cultivar uma boa relação com uma instituição fundamental na sociedade timorense - a Igreja Católica. O facto de ele ser muçulmano só tornava mais crucial esse relacionamento. O enfrentamento com a Igreja em 2005, que esteve à beira de um banho de sangue (e em que o Ministro do Interior, Rogério Lobato, já teve um alarmante papel) devia ter feito arrepiar caminho.

Acresce que, por temperamento, Mari Alkatiri tem dificuldades de comunicação que ajudam a propagar uma imagem de distanciamento e insensibilidade aos olhos do povo. Que naturalmente desconsidera progressos logrados na edificação do Estado, face à brutalidade da pobreza e desemprego com que continua confrontado. Diante dos delegados ao Congresso da FRETILIN, o PM destacou que em 2007 o país partiria sem dívidas para o desenvolvimento propiciado pelos rendimentos do petróleo. Mas a verdade é que as dívidas estão contabilizadas pela penúria e expectativas desapontadas da maioria dos timorenses. O que aliás, se vê amplificado pela inexistência de um sistema de comunicação social cobrindo todo o território que contrarie boatos e rumores maledicentes.

A animosidade contra o PM Alkatiri também ecoa na Austrália, o incontornável vizinho, onde certos interesses nunca desistiram de apresentar o Estado de Timor Leste como inevitavelmente condenado à falência. Era de esperar que o acordo sobre os recursos do petróleo, que o PM timorense duramente arrancou a Camberra, alimentasse ressentimentos. Em Dili muitos ? e não apenas no campo do PM ? atribuem a interesses australianos um plano para desestabilizar Timor Leste. Mas a verdade é que, a existir tal plano, os principais actores timorenses prestaram-se a cumprir na perfeição o papel que nele lhes estaria destinado...

O pedido de ajuda a tropas australianas (com portugueses, malásios e neo-zelandeses a compor o ramalhete, para dar o que seja possível de carácter multilateral à operação) tornou-se imperativo face ao repentino e total descalabro da segurança e da lei em Dili, na semana passada. Mas também resultou da consciência clara dos líderes timorenses de que os autralianos entrariam sempre, com ou sem pedido, em última análise em socorro dos seus nacionais em perigo. Hoje em Timor Leste admite-se que as forças de segurança australianas estão para ficar...

Os timorenses são sem dúvida principais responsáveis pela degradação da situação política e de segurança interna, independentemente de quaisquer eventuais intromissões. Mas as insuficiências da classe política timorense perante os desafios tremendos da construição do Estado a partir do zero não deviam ter surpreendido ninguém na comunidade internacional. O optimismo exuberante e apressado das Nações Unidas, da União Europeia e também de Portugal em relação à aparente 'história de sucesso' timorense levou a uma desmobilização prematura. Faltou consistência e persistência aos esforços multilaterais e bilaterais para ajudar a consolidar estruturas, métodos e cultura democráticas. Em particular, o investimento nas forças armadas e policiais, no aconselhamento técnico-político dos órgãos de soberania e também no sector judicial revelou-se insuficiente e, possivelmente, mal direccionado. Quando esta crise estiver ultrapassada, é fundamental que a comunidade internacional, e Portugal também, reflictam e reanalisem o seu envolvimento na cooperação com Timor-Leste. Não porque Timor Leste independente esteja condenado ao falhanço. Continua a ser um país viável. Os sucessos da "história de sucesso" timorense não podem ser apagados, são reais. Mas é indispensável ajudar a controlar as inevitáveis derivas de insucesso. Em Timor Leste, como noutros países onde a democracia emerge.


publicado no EXPRESSO, 3.6.06

This page is powered by Blogger. Isn't yours?