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18 de setembro de 2005

ONU - desmascarar o bluff 

Por Ana Gomes

Em 2000, na ONU, os Chefes de Estado de todo o Mundo comprometeram-se pelos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Esta semana, 5 anos depois, na Cimeira comemorativa do 60º aniversário das Nações Unidas, deveriam fazer o balanço do caminho percorrido e decidir reformar a ONU para fazer face às novas ameaças globais (terrorismo, proliferação de conflitos e de ADM, pobreza, violação dos direitos humanos, degradação ambiental, etc...).
O caminho foi preparado por dois excelentes relatórios, um encomendado por Kofi Annan a um Painel de Alto Nível, e outro apresentado pelo próprio Secretário Geral.
Ninguém mais do que a Administração Bush clamou por reformas da ONU e do Direito Internacional. A inacção da ONU havia sido argumento invocado por Washington para justificar a ofensiva contra o Iraque sem respaldo do Conselho de Segurança e no Direito Internacional. Também, ninguém denegriu mais as capacidades da ONU - ainda em Junho no Congresso, o Republicano Henry Hyde ameaçava que, sem profunda reforma da ONU, os EUA deixariam de pagar contribuições (representando 20% do orçamento da ONU) .
Mas, afinal, era tudo «bluff»! Os governantes dos EUA, tal como os da China e Russia, não querem reforma nenhuma da ONU. Como está, serve-lhes: ora de bode expiatório, ora de cortina de fumo, para a própria incoerência, os seus dois pesos e duas medidas e a sua própria inacção. Há muito que se percebia que não iriam viabilizar o alargamento do Conselho de Segurança (Portugal apoiou o quarteto pretendente, Alemanha, Japão, Brasil e India, quando o que importava era defender o que os cidadãos europeus querem e a construção da Europa impõe - um lugar de membro permanente para a UE; com a vantagem de que essa exigência, se assumida pela maioria dos governos europeus, tornaria realmente imparável a reforma do CS).
Mas a prova, provadinha, de que por parte da Administração Bush não interessa apoiar e modernizar a ONU, antes descredibilizá-la e, assim, desarticular o multilateralismo, reside nos três arrasadores torpedos que lhe lançou nas últimas semanas:
- O primeiro foi a nomeação pelo Presidente Bush do «ultra neo-con» John Bolton para embaixador na ONU, ultrapassando o Congresso. O mesmo que na Comissão dos Direitos Humanos, em Genebra, onde o conheci, dizia que «não há nada disso de Nações Unidas. Há comunidade internacional, que ocasionalmente pode ser liderada pela única superpotência, os EUA, se isso servir os nossos interesses e se conseguirmos fazer os outros seguir-nos». O mesmo que defendeu (como Osama Bin Laden decerto não desdenharia), que a sede da ONU, com 38 andares, «se perdesse dez, não fazia diferença nenhuma..."
- O segundo foi a «performance» de lançamento de Bolton: as 700 e tal propostas de emenda ao texto que estava há meses a ser negociado para ser aprovado nesta Cimeira, esvaziando os mais importantes compromissos assumidos em 2000 e as vias de reforma da ONU que já reuniam amplo consenso. Bolton propôs, por exemplo, eliminar referências aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, ao Tribunal Penal Internacional, ao Protocolo de Kyoto e ao desarmamento. É sintomática a cruzada contra o desarmamento - a que os EUA estão vinculados, designamente, no âmbito do Tratado de Não Proliferação Nuclear (cuja revisão, em Maio passado, também frustraram): o desígnio é armar, conceber e utilizar novas gerações de armas nucleares ? mesmo que a proliferação inerente conduza a Humanidade ao holocausto nuclear.
- O terceiro torpedo destinava-se a silenciar quem tem autoridade, credibilidade e conhecimento para defender a ONU e o Direito Internacional. Quem precisava de ser punido por ter ousado denunciar a guerra do Iraque como ilegal. E por isso foi agora divulgado o Relatório Volcker, a pretexto da falta de controlo das ineficiências e abusos do Programa «Oil for Food» para o Iraque de Saddam (praticados com o assentimento de todos os P5 e em beneficio das suas empresas e governos clientes). No «timing» ideal para intimidar Kofi Annan - o Secretário-Geral da ONU que desde sempre mais reformas empreendeu, o que melhor as pensou e soube promover. (Ironicamente, e não obstante este e outros ataques, diversas agências da ONU, vocacionadas para a ajuda exclusiva aos países em desenvolvimento, acorreram a ajudar cidadãos do mais rico país do mundo afectados pelo Katrina e deixados cair pela escandalosa inoperância da sua Administração face a uma mais que anunciada catástrofe).
Claro que nas negociações nesta Cimeira houve complicações criadas por outros países para entravar o consenso sobre reformas substanciais. Os africanos, por exemplo, não endossaram o G-4, e Cuba, Paquistão e Egipto, entre outros, agarraram-se às emendas de Bolton para baralhar mais a negociação. Mas, nem outra coisa seria de esperar, com os EUA, a Russia e a China a darem os sinais que deram... Era aí, justamente, que a liderança de uma grande potência poderia ter feito toda a diferença para criar uma dinâmica irresístivel.
Pouco será, assim, de esperar da Cimeira. O que mostra, no fundo, tal como o Katrina, a falta de visão e de capacidade estratégica dos EUA, a superpotência que resta mas já em «imperial overstrecht. A sua actual Administração despreza e desperdiça um poderoso instrumento para legitimar e efectivar o poderio americano à escala planetária - a ONU e a via multilateral em geral. O «bluff» da reforma da ONU, tal como o «bluff» da preparação de emergência que o Katrina expôs (revelando também alarmante impreparação para acorrer a vítimas de um ataque terrorista), põem de facto a nu a incompetência e desastrosa governação da Administração Bush. E os custos não são apenas suportados pelos americanos: paga-os toda a Humanidade. Em insegurança global.
(Escrito em 12.9.05, publicado no «COURRIER INTERNACIONAL»,16.9.05)

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