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4 de agosto de 2005

A questão presidencial 

por Vital Moreira

A tese defendida por J. Pacheco Pereira (e na sua esteira por vários observadores menos originais...) sobre uma alegada melhor posição de Cavaco Silva, comparado com Mário Soares, para assegurar a estabilidade política na vigência do Governo PS tem o defeito óbvio de não colar com a realidade e de ser contrariada por vários sinais que vêm daquela banda sobre o que se espera da desejada eleição do seu candidato.
Em primeiro lugar, ninguém imagina facilmente o antigo e assertivo primeiro-ministro do PSD a prescindir de interferir tanto quanto possível na esfera do Governo, sobretudo em matéria económica e financeira. Aliás, a insistência com que os seus apoiantes sublinham a sua (reconhecida) competência nessas áreas como argumento da sua candidatura só pode aumentar a convicção de que esperam que ele faça uso dela, caso seja eleito. A suspeita de ver em Belém uma espécie de ministro-sombra da oposição na pasta da economia e das finanças é tudo menos coerente com a alegada vocação de Cavaco Silva para a estabilidade política.
Em segundo lugar, são inequívocos os sinais que apontam para uma associação da eventual eleição de Cavaco Silva a um reforço dos poderes e da intervenção presidencial, a qual só pode ser fonte de conflitos políticos com o Governo e da instabilidade política que lhe vai inerente.
Há dias no PÚBLICO, Manuel Queiró, do CDS/PP, escreveu o seguinte: "A previsível eleição de Cavaco Silva era até há pouco, com razão ou sem ela, o terreno onde se jogavam todas as esperanças de regeneração do sistema político. Sem ainda suficientes indicações para tal, crescia difusamente a convicção de que, com Cavaco em Belém, nada ficaria na mesma nas relações entre o poder executivo e a presidência. Uma espécie de revolução silenciosa ocorreria. O pendor parlamentar do regime entraria naturalmente em declínio, sem que para já ninguém avançasse com os contornos dessa mudança. O sentido e a natureza das alterações ficariam entregues a Cavaco, mais uma vez providencial e sabedor do melhor para Portugal."
Esta análise retrata fielmente aquilo que um observador atento pode detectar nas esperanças da direita em geral em relação ao "seu" Presidente da República. Numa formulação mais estrema, as eleições presidenciais apresentam-se para alguns como uma segunda volta das legislativas, em que os derrotados desta poderiam vingar essa derrota e retomar as alavancas do poder, via Palácio de Belém, incluindo pela dissolução parlamentar numa situação desfavorável para o Governo; numa versão mais moderada, a eleição de Cavaco Silva poderia, pelo menos, funcionar como contrapoder, ou seja, como contraponto e limite dos poderes da maioria socialista, evitando a consumação de algumas das suas políticas e capitalizando em favor da oposição um previsível descontentamento popular com a situação económica e com as políticas de austeridade financeira.
Seja como for, o novo protagonismo presidencial teria necessariamente de passar por um reforço dos poderes e dos meios de intervenção do Presidente da República, pelo menos em relação ao paradigma que tem sido sedimentado pelos titulares do cargo, com pequenas variações, desde a revisão constitucional de 1982.
Ora não falta quem advogue explicitamente esse caminho. Já antes do texto de Queiró, o deputado do PSD, Paulo Rangel, também no PÚBLICO, depois de reeditar a tese de Pacheco Pereira, insinuava que com Cavaco o regime poderia evoluir para um sistema protopresidencialista à maneira francesa, se a actual maioria socialista não vingasse. Escreveu ele: "O sistema [de governo português] não pode sobreviver ao esboroamento consecutivo de duas maiorias absolutas (a da coligação e a do PS). Será necessário encontrar outra solução institucional e ela passará necessariamente por um reforço fáctico da instituição presidencial. (...) A Constituição actual pode perfeitamente conviver com um semipresidencialismo próximo do francês: tudo depende de saber quem é o PR e qual a concreta correlação de forças políticas."
Não vale a pena contestar aqui a tese da admissibilidade constitucional de um semipresidencialismo à francesa entre nós, sendo, no entanto, de notar que a nossa lei fundamental não faculta ao Chefe do Estado alguns dos principais instrumentos que permitem ao Presidente francês ser o verdadeiro protagonista da vida política e da condução governamental, nomeadamente a presidência dos conselhos de ministros, a livre exoneração do primeiro-ministro, a competência presidencial própria nas áreas das relações externa e da defesa, a convocação unilateral dos referendos, a nomeação de muitos titulares de cargos públicos, etc. Mais importante do que a questão constitucional é, nas presentes circunstâncias, o significado político da defesa de uma presidencialização do regime sob a égide de Cavaco Silva (isto quando em França, curiosamente, se procede a um balanço muito crítico do semipresidencialismo gaulês...).
Analisando os dois cenários prováveis, escrevia há dias J. M. Barroso no Diário de Notícias: "(...) A questão, para a direita e para a esquerda, é de novo saber se o Presidente é um factor de perigo ou de resguardo para os governos. Um governo que tenha de agir com determinação para suster a crise financeira do Estado tem de contar com o apoio de um Presidente de referência - daí o recurso a Soares. Uma oposição que queira protagonizar um projecto de "regeneração" do país tem de contar com um Presidente forte - daí a esperança em Cavaco. É, uma vez mais, a espada da dissolução que se coloca sobre a cabeça dos governos de maioria. É, uma vez mais, o modelo do nosso semipresidencialismo que se questiona."
A verdade, porém, é que o questionamento do nosso alegado "semipresidencialismo" volta a assumir no campo da direita uma versão claramente presidencialista. Falhado o sonho de unificação do poder ínsito na célebre fórmula "uma maioria - um governo - um presidente", o PSD, nisto acompanhado pelo CDS, aposta francamente numa fórmula de "poder dividido" entre uma maioria parlamentar e uma "maioria presidencial", inevitavelmente conflituantes.
Por isso, se se confirmarem estas posições, o que está em causa nas próximas eleições presidenciais é não somente a estabilidade governativa, mas também a própria estabilidade do regime. O que se propõe é, de facto, mudar as regras do jogo, se não as regras constitucionais (que a direita não pode modificar), pelo menos a sua leitura e implementação. Se os indícios se confirmarem, então, de novo, tal como em 1986, a questão principal das próximas eleições presidenciais será a continuidade e estabilidade do regime político vigente.
(Público, terça-feira, 2 de Agosto de 2005)

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