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21 de julho de 2005

Pós-secularismo 

Por Vital Moreira

Contrariando o longo movimento de secularização das sociedades modernas e de tendencial diminuição do papel da religião na esfera pública, eis que a nossa época parece assistir a um ressurgimento religioso e a um retorno do impacte público da religião. O filósofo alemão Jürgen Habermas falou a propósito no "pós-secularismo" e não falta quem refira um período de "refluxo" da secularização A questão que se coloca é a de saber se o retorno da religião implica uma revisão da natureza laica do Estado democrático moderno.
Na verdade, desde o Renascimento, com a afirmação da centralidade do homem (humanismo), a tendência das sociedades modernas foi identificada pela crescente perda de peso da religião na vida pública e também pelo decréscimo da crença e da prática religiosas. O iluminismo e o liberalismo reforçaram essa evolução, ao sublinharem o papel da razão e da liberdade pessoal. O cientismo e o positivismo oitocentistas completaram o quadro em que se desenvolveu o progressivo afastamento da religião do espaço público. Os movimentos anticlericais consubstanciaram em militantismo anti-religioso o que se julgava ser uma "lei social", tirando partido da resistência da Igreja Católica a todas as ideias da modernidade (racionalismo, liberalismo, democracia, etc.). O marxismo decretou o esgotamento da religião com o fim da alienação humana. À margem da ideologia, a sociologia, primeiro, e a ciência política, depois, deram conta da efectiva secularização da sociedade e do Estado modernos, com a transferência da religião para o domínio pessoal e privado.
É certo que a secularização foi essencialmente um fenómeno europeu e dos países sob influência europeia, que não encontrou paralelo noutros continentes, pelo menos com a mesma intensidade. Mas a ideia de que a Europa servia de modelo das sociedades modernas e de antecipação da evolução das demais levou a universalizar a secularização europeia como uma regra geral da modernização, mesmo se a persistente religiosidade dos Estados Unidos sempre aconselhasse alguma prudência. Seja como for, são hoje indesmentíveis os sinais de uma mudança de tendência, cuja profundidade e cujo impacte ainda é cedo para avaliar, mas que já levou muitos observadores a falar de um "ressurgimento global da religião".
Entre esses sinais contam-se a maior visibilidade da Igreja Católica nas últimas décadas e as manifestações do catolicismo como fenómeno público de massas, sobretudo com o pontificado de João Paulo II; o crescimento dos movimentos evangélicos nos Estados Unidos e a sua expansão noutros continentes (América Latina, África); a ampliação da área de influência do islão na África e na Europa; a revitalização do judaísmo religioso em muitos países; o ressurgimento do induísmo e do budismo. Mesmo onde não se observa um crescimento considerável do número de praticantes, é pelo menos notório um acréscimo de visibilidade da prática religiosa, que a televisão tem contribuído para ampliar.
O impacte do fenómeno religioso é especialmente marcante nas sociedades onde a secularização não chegou a arrancar. A evidência revela um persistente, se não crescente, domínio do factor religioso no mundo islâmico. Um recente inquérito de opinião do Pew Research Center norte-americano revelou que a identificação religiosa prevalece sobre a identificação nacional em muitos países islâmicos. No Paquistão, cerca de 80 por cento das pessoas autodefinem-se antes como muçulmanas do que como paquistanesas, e só sete por cento se definem primeiro pela sua nacionalidade; em Marrocos, as percentagens são igualmente impressionantes, pois 70 por cento se definem pela religião e sete por cento pela sua nacionalidade; na Jordânia, os números são respectivamente 60 por cento e 23 por cento. Mesmo na oficialmente laica Turquia, a proporção da ligação religiosa ultrapassa em muito a conexão nacional (43 por cento contra 29 por cento). É provável que a falta de tradição nacional na maior parte dos países islâmicos tenha aqui uma parte na explicação do fenómeno, dado tratar-se de países de formação relativamente recente; mas seguramente esse factor está longe de ser decisivo, sendo a explicação devida evidentemente às características do próprio islamismo. Tudo indica que nada de semelhante se verifica noutras religiões, até porque os países onde elas são socialmente dominantes são também Estados de longa existência e forte identidade nacional. Mas não está excluído que a primazia da conexão religiosa sobre a ligação nacional exista como fenómeno significativo noutros quadrantes religiosos, designadamente no judaísmo.
Em si mesmo, o ressurgimento da religião não suscitaria nenhuma preocupação política, não fosse ele acompanhado de um fenómeno de radicalização e de fundamentalismo, o qual não escolhe infelizmente igrejas nem confissões, mas que tem os seus pontos altos no mundo islâmico, nos movimentos evangélicos dos Estados Unidos e no extremismo judaico. O fundamentalismo religioso é caracterizado pela sua influência "holística" sobre as atitudes dos crentes, na medida em que todos os aspectos da vida passam a ser sensíveis à opção religiosa, contaminando as posições em relação a quase todos os temas da vida, em especial as questões da despenalização do aborto, da sexualidade e da família, da homossexualidade, da eutanásia, da investigação bio-humana, etc. A religião captura as opções políticas.
Para além das situações de quase "guerra civil" religiosa, existem muitos outros conflitos com forte componente religiosa, quer à escala local, quer à escala global. Uns são "apenas" guerras ideológicas, como por exemplo a "guerra do aborto" nos Estados Unidos; outros, infelizmente, são guerras a sério, como nos Balcãs (sem esquecer o antigo conflito da Irlanda do Norte, entre católicos e protestantes). Outros ainda configuram situações potencialmente explosivas, como o conflito entre as minorias judaica e islâmica em França. A dimensão religiosa pode adicionar ingredientes devastadores em conflitos de outra natureza, como sucede na Palestina, no Iraque ou no Afeganistão, tanto mais que elas constituem episódios da eterna "guerra de civilizações" entre o mundo islâmico e o mundo cristão, tal como o radicalismo islâmico a vê desde a era das cruzadas.
Ao contrário do que pretendem muitos dos movimentos religiosos, a dessecularização da sociedade não obriga a rever a secularização do Estado, pelo contrário, é justamente porque o ressurgimento e a radicalização religiosa criam um potencial de dissenção e intolerância religiosa e de conflito civil, que o Estado mais deve salvaguardar a sua neutralidade e não-identificação com qualquer religião. A emancipação do Estado em relação à religião, que se iniciou com a Paz da Vestfália de 1648 e que se consumou com as leis de separação nos séculos XIX e XX constitui uma condição da liberdade e da tolerância religiosa, da paz civil e política e da autonomia do Estado nas sociedades religiosamentre plurais contemporâneas. Perante a nova assertividade militante, e por vezes agressiva, das religiões e a natureza "holística" de muitos movimentos fundamentalistas religiosos, só um Estado laico, religiosamente não comprometido, pode preservar uma relação de igual identificação e pertença com todos os seus cidadãos. Tal como foi das guerras religiosas que nasceu o Estado moderno, também foi da diferença religiosa que nasceu a laicidade do Estado, como condição da liberdade e igualdade religiosa de todos.
Desse ponto de vista, a recusa de identificação oficial da União Europeia com o cristianismo - que muitos pretenderam introduzir no Tratado Constitucional -, bem como a recente decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos que considerou inconstitucional a exibição dos Dez Mandamentos bíblicos nas salas de audiências dos tribunais, constituem sinais de que, por mais religiosa que seja a sociedade, o Estado deve preservar uma distância primordial em relação à esfera religiosa.

(Público, Terça-feira, 19 de Julho de 2005)

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