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28 de julho de 2005

O sindicato de Lisboa 

Vital Moreira

Um espectro assola os lisboetas de todas as condições e partidos: a tragédia de deixarem de ter o aeroporto ao pé da porta, dentro da cidade, privilégio raro por esse mundo fora. Companhias de aviação e agentes turísticos, hoteleiros e taxistas, jet set nacional e funcionários da UE no vaivém de Bruxelas, colunistas de imprensa e médicos de partida para o próximo congresso turístico nas Caraíbas -, não existe virtualmente ninguém que não considere como crime de lesa Lisboa a peregrina ideia de construir um novo aeroporto internacional fora da cidade. A oposição unânime ao aeroporto só tem comparação na reacção dos numerosos regimes especiais da função pública beneficiários de privilégios em vias de extinção.
Contra essa fronda, em que dá pena ver alinhar espíritos normalmente lúcidos, é irrelevante a evidência de que o aeroporto da Portela é uma espécie de apeadeiro aeronáutico que desmerece mesmo no confronto com aeroportos regionais europeus. De nada vale a demonstração de que ele tem os dias contados, por causa das suas limitações físicas e ambientais (nomeadamente o ruído). Pouco importa a ideia de que o país não pode deixar de ter um aeroporto internacional capaz de responder ao prvisível aumento da procura de transporte aéreo e às modernas exigências aeroportuárias.
Ora, se há algo de errado no projecto do novo aeroporto, independentemente da sua localização, não é decisão de avançar finalmente com a sua execução, mas sim o facto de esta ser tardia, obrigando à realização de custosas obras de adaptação interina da Portela, que bem poderiam ter sido poupadas, se a nova estrutura tivesse avançado mais cedo, como deveria. Infelizmente em Portugal o mal habitual das obras públicas em infra-estruturas não é serem supérfluas, mas sim virem atrasadas no tempo.
Um dos grandes argumentos brandidos contra o novo aeroporto tem a ver com os seus elevados custos financeiros, sobretudo tendo em conta as dificuldades financeiras nacionais e os sacrifícios que se está a pedir aos cidadãos, especialmente aos funcionários públicos, em termos de impostos, remunerações, idade de reforma e valor das pensões, etc. Essas preocupações são em geral infundadas e em boa medida demagógicas. Primeiro, por maiores que sejam as limitações financeiras, continua a ser ao Estado que cabe assegurar as infra-estruturas básicas, que o mercado e a iniciativa privada não garantem; segundo, uma das razões para a contenção de gastos públicos correntes tem a ver justamente com a necessidade de libertação de meios para investimento, sem o qual não haverá desenvolvimento, nem emprego, nem alívio das dificuldades financeiras actuais; terceiro, neste caso os meios financeiros necessários podem ser proporcionados em grande parte pelo sector privado, dada a rentabilidade da infra-estrutura.
Infelizmente, Lisboa está mal habituada. Não lhe bastando as vantagens inerentes à sua condição de capital - como centro político, administrativo, financeiro, económico, mediático, artístico, etc. -, Lisboa dá-se mal com qualquer situação em que os interesses do país possam entrar em conflituar com os seus próprios interesses imediatos. Por definição, considera que os seus interesses se confundem com os interesses do país. E se, porventura, isso pareça não suceder, então o mal está no país. Curiosamente, os protestos contra o novo aeroporto com base nos alegados custos financeiros não têm equivalente quando se trata de investimentos estaduais que beneficiam directamente Lisboa, como sucede com os projectos de novas linhas de metro ou de novas travessias sobre o Tejo.
Para além dos benefícios resultantes da "capitalidade" em termos de oportunidades, emprego, rendimentos e qualidade de vida, Lisboa ainda beneficia do privilégio de ver o Estado encarregar-se de obras e serviços públicos que normalmente não lhe deveriam pertencer. O caso mais flagrante é o dos transportes colectivos urbanos. Enquanto noutras cidades esse serviço público é responsabilidade dos respectivos municípios, seja em administração directa ou indirecta (serviços municipalizados, empresas públicas municipais, concessão a entidades privadas), cabendo-lhes também suportar os encargos financeiros inerentes às "obrigações de serviço público", já no caso de Lisboa a organização dos transportes colectivos constitui responsabilidade do Estado. Isso quer dizer que o financiamento das obrigações de serviço público de transporte, designadamente as chamadas "indemnizações compensatórias" - não mencionando sequer o investimento nas respectivas infra-estruturas -, incumbe ao Oçamento do Estado, ou seja, a todos os contribuintes, mesmo àqueles que já pagam os transportes urbanos dos seus próprios municípios.
Nada melhor simboliza a subestimação dos interesses gerais face aos interesses de Lisboa do que o facto de até há pouco ser obrigatório passar por Lisboa para viajar do Norte ou do Centro do país para o Sul por auto-estrada. Outro exemplo recente tem a ver ainda com investimentos públicos. Como a região de Lisboa ultrapassou em muito o limite de riqueza que habilita a beneficiar dos fundos comunitários destinados ao desenvolvimento regional e à coesão territorial, é tudo menos surpreendente que, para atenuar essa perda, o Governo tenha decidido há pouco disponibilizar fundos consideráveis para ajudas de Estado às empresas dessa região. Não consta ter havido algum protesto contra esse "desperdício" de dinheiros públicos em época de dificuldades financeiras.
Outras vezes ocorre que, face aos maciços investimentos do Estado em Lisboa e na sua região, os governos se sentem levados a compensar outras regiões com algumas migalhas, para não parecer tão escandaloso o desequilíbrio. Assim sucedeu depois da Expo-98 em Lisboa, com o lançamento do programa Pólis, destinado a revitalizar várias outras cidades por esse país fora. Acontece porém que, na maior parte dos casos, a execução desse plano ficou muito aquém do programado, por falta de verbas. Quando há que cortar no orçamento, começa-se pela província!
Portugal é reconhecidamente um país de desenvolvimento assimétrico, com enormes disparidades territoriais, cuja superação carece de "acção positiva" do Estado no plano do investimento público regional. Tal circunstância poderia suscitar críticas contra um investimento público da dimensão do novo aeroporto, inevitavelmente situado próximo de Lisboa, sua principal beneficiária. Essa crítica seria demagógica, visto que neste caso o que está em causa são os interesses do país. Mas ao menos que ele não seja enjeitado em função do interesse paroquial de Lisboa em manter um aeroporto doméstico.

(Público, Terça-feira, 26 de Julho de 2005)

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