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8 de julho de 2005

Liberdade e responsabilidade 

por Vital Moreira

No seu editorial de quinta-feira passada, intitulado "Regulação e liberdade", José Manuel Fernandes critica sumariamente a anunciada intenção do Governo de estabelecer mecanismos sancionatórios para as infracções deontológicas dos jornalistas, hipótese tanto mais censurável quanto tal responsabilidade poderia caber à actual Comissão da Carteira Profissional, "um organismo misto, espúrio e do qual só existem razões de queixa".
Há dois aspectos diferentes a considerar. O primeiro, e o mais importante, consiste em saber se as faltas deontológicas dos jornalistas devem ou não ser efectivamente sancionadas. O segundo aspecto, que supõe uma resposta positiva à questão anterior, tem que ver com o órgão competente para apreciar e sancionar as infracções.
Vejamos a actual situação. Há no estatuto legal dos jornalistas um preceito específico (art. 14.º) sobre os respectivos deveres profissionais, desde o dever de rigor e isenção até ao dever de não recolher ilicitamente imagens e sons, passando, entre outros, pelos deveres de abster-se de formular acusações sem provas, de não identificar as vítimas de crimes sexuais, de não falsificar ou encenar situações com intuitos de abusar da boa-fé do público. Ora, apesar de a lei os considerar como "deveres fundamentais", não existe nenhum mecanismo previsto para apreciar e punir as infracções dos mesmos. Trata-se, portanto, de uma norma branca, sem sanção.
A questão que se coloca é a de saber se essa situação deve permanecer assim, face à existência, que ninguém pode negar, de graves violações dos referidos deveres. Concretamente: se um jornalista publicar como verídica uma história que o mesmo inventou, se copiar um texto alheio e o publicar como seu, se identificar ou publicar fotografia de uma criança vítima de violência sexual, se revelar uma fonte à qual tinha garantido sigilo, se publicar uma peça a troco de vantagens pessoais, se, por má-fé, acusar alguém de um facto ilícito - e muitas outras hipóteses bem reais -, será razoável que tais infracções fiquem impunes e que os seus autores continuem a poder reincidir nelas sem qualquer sanção? Será que, em nome da liberdade de imprensa, o "jornalismo de sarjeta", como uma vez o qualificou um conhecido jornalista, deve continuar a tripudiar sobre os deveres fundamentais da profissão, à custa de direitos de terceiros ou de bens constitucionalmente protegidos?
É certo que existe um código deontológico dos jornalistas, bem como um conselho deontológico no respectivo sindicato. No entanto, como associação privada e voluntária que é, o sindicato não tem jurisdição sobre todos os jornalistas; além disso, os meios de censura deontológica são reconhecidamente ineficazes; e finalmente, é fácil para qualquer infractor furtar-se a qualquer censura, bastando deixar o sindicato. Com essa situação bem podem os prevaricadores.
Também é certo que existe a responsabilidade penal e civil. Contudo, por um lado, nem todas as infracções profissionais envolvem tais tipos de responsabilidade (por exemplo, uma reportagem inventada); e por outro lado, uma coisa é a responsabilidade penal ou civil e outra coisa é a responsabilidade profissional, destinada a defender a deontologia, o bom-nome e o prestígio da profissão em si mesma. Se um jornalista identifica a vítima de um crime de pedofilia não incorre somente em responsabilidade civil, pelos danos causadas ao lesado, mas também em responsabilidade deontológica pelos danos causados à profissão.
Os primeiros interessados na existência de mecanismos efectivos de responsabilidade deontológico-profissional devem ser os próprios jornalistas, pelo menos se não quiserem ser co-responsáveis pela (e vítimas da) degradação da sua imagem profissional colectiva. Uma profissão que não vela pelo cumprimento dos deveres profissionais não tem autoridade nem legitimidade para reivindicar todos os direitos e mais algum. Não deixa de ser estranho que quando vêm a lume condutas mais escandalosamente censuráveis (como por exemplo a daquele jornalista que gravou e guardou ilicitamente horas de conversas telefónicas com várias pessoas a propósito do processo Casa Pia) haja um coro de protestos contra a impunidade, e depois haja uma sistemática rejeição das propostas que visam pôr fim à irresponsabilidade pela conduta profissional ilícita.
A liberdade de profissão, incluindo a de jornalista, não é feita somente de direitos mas também de deveres. Tratando-se de uma profissão legalmente regulada quanto a vários aspectos, desde o acesso à profissão até aos direitos dos jornalistas, passando pelas incompatibilidades profissionais - e ninguém seguramente defende a sua desregulação, pelo menos por bons motivos -, não existe nenhuma razão válida para que os deveres profissionais fiquem sem sanção adequada, diferentemente do que sucede com as demais profissões reguladas, todas elas dotadas de meios efectivos de punição disciplinar das infracções deontológicas. Liberdade não pode nem deve rimar com impunidade.
Questão é definir os mecanismos para efectivar tal responsabilidade, nomeadamente a competência para apreciar as infracções e aplicar as sanções. Segundo terá sido anunciado pelo ministro competente, estar-se-á a pensar em recorrer à Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas (CCPJ), que é um órgão oficial, composto paritariamente por membros eleitos pelos jornalistas e pelos órgãos de comunicação social, sendo presidida por um juiz. Cabendo-lhe regular o acesso à profissão e as incompatibilidades profissionais, através da atribuição e da cassação da carteira profissional, a CCPJ constitui uma solução de "auto-regulação interprofissional" legalmente estabelecida, sem prejuízo da impugnação judicial das suas decisões, nos termos gerais.
Como se sabe, a solução mais corrente no que respeita à auto-regulação profissional legalmente estabelecida consiste nas ordens profissionais, que têm proliferado no nosso país, apesar de terem a sua origem no sistema corporativista do Estado Novo. O que caracteriza as ordens profissionais é a mistura da auto-regulação profissional, incluindo a autodisciplina profissional, com a defesa dos interesses profissionais, o que as torna verdadeiros "grupos de interesse oficiais". Não admira que a maioria parte das profissões deseje ter uma ordem profissional, não somente pelas funções de auto-regulação (menos porventura pelas funções de autodisciplina), mas também, e sobretudo pelas funções de grupo de interesse corporativo legalmente protegido.
Por minha parte, apesar de desde há muitos anos defender a responsabilização dos jornalistas pelas infracções profissionais, sempre me manifestei contra a criação de uma ordem profissional - aliás rejeitada numa referendo à classe realizado há mais de uma década -, desde logo porque a considero desnecessária para desempenhar as únicas funções que a poderiam justificar, ou seja, as funções de regulação do acesso e do exercício da profissão. De facto, existindo já um mecanismo específico de regulação da profissão, esse quadro bem poderia ser aproveitado para lidar também com o ilícito disciplinar dos jornalistas. Aliás, se se quiser optar por uma solução de mais genuína autodisciplina, a competência poderia caber não à CCPJ em formação plena, mas sim a uma secção disciplinar específica composta exclusivamente pelos representantes dos jornalistas e pelo juiz presidente.
Em resumo, embora não sendo ainda publicamente conhecidos os contornos da solução governamental, a direcção geral anunciada só pode merecer a minha concordância. É tempo de juntar responsabilidade à liberdade profissional.

(Público, Terça-feira, 5 de Julho de 2005)

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