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21 de junho de 2005

O nome e a coisa 

por Vital Moreira

Um dos principais argumentos dos adversários do tratado constitucional da UE sob um ponto de vista nacionalista ou "soberanista", seja de direita seja de esquerda, tem a ver com a utilização da noção de "constituição", termo este que, a seu ver, só pode ser usado em relação ao Estado, pelo que a sua utilização no caso da UE só poderia ser um equívoco ou, então, esconder a vontade de criar um super-Estado europeu à custa da soberania dos Estados-membros. Importa considerar este argumento.
É evidente que o chamado tratado constitucional é antes de mais um tratado internacional. Mais isso não preclude à partida a sua natureza constitucional. O "poder constituinte" pode revestir muitas formas, inclusive a forma "contratual". Há mesmo constituições aprovadas por tratado internacional, como sucedeu com a actual constituição da Bósnia-Herzegovina, saída dos acordos de Dayton. A própria constituição dos Estados Unidos da América foi elaborada e aprovada numa "convenção" composta por representantes dos Estados-membros da confederação preexistente e depois ratificada internamente pelos mesmos. Por isso, uma coisa é a forma do instrumento jurídico, outra coisa a natureza constitucional do texto normativo em causa. Ou seja, o "tratado constitucional" da UE pode ser simultaneamente um tratado, quando à sua forma, e uma constituição, quanto ao seu conteúdo, enquanto "lei fundamental" de uma entidade política autónoma dotada de certos traços típico de "estadualidade", mesmo sem ser um Estado.
Aliás, se estamos formalmente perante um tratado, negociado e aprovado pelos governos dos Estados-membros no âmbito da conferência intergovernamental (CIG), e agora sujeito a aprovação e a ratificação interna pelos órgãos competentes dos mesmos Estados, de acordo com o paradigma das convenções internacionais, seguramente que a sua formação revestiu porém alguns traços pouco consentâneos com uma visão puramente internacionalista ou intergovernamentalista. O tratado foi em grande parte elaborado fora do quadro de negociações intergovernamentais, no seio de uma "convenção", onde os representantes dos governos eram minoritários, havendo uma forte representação do Parlamento europeu e da Comissão europeia e uma representação ainda mais vasta dos parlamentos nacionais, o que sucedeu pela primeira vez na aprovação de tratados da CE/UE. A participação de representantes da própria UE e dos parlamentos nacionais é completamente estranha ao paradigma intergovernamentalista dos tratados internacionais. Se a isso acrescentarmos que o texto foi posteriormente aprovado pelo Parlamento Europeu, acentuando a componente de "autoconstituição" da UE, fácil é verificar que estamos perante um procedimento novo, que procurou mimetizar elementos de constitucionalismo transnacional do passado.
De resto, o tratado constitucional limitou-se a desenvolver e aprofundar os traços paraconstitucionais preexistentes na arquitectura da UE, como entidade política "a se", dotada de atribuições próprias, de uma ordem jurídica autónoma, de protagonismo na cena internacional, etc., que vêm desde pelo menos o Acto Único Europeu (1987) e principalmente desde o tratado de Maastricht, ou da União Europeia (1992). Entre elas contam-se o primado do direito da União sobre os direitos nacionais, o alargamento das atribuições da UE para fora da esfera económica (projecto da integração política), o aumento dos poderes do Parlamento europeu, designadamente no plano legislativo, a generalização das votações por maioria (qualificada) em vez da unanimidade, a cidadania europeia, a "comunitarização" da área da justiça e assuntos internos (JAI), a instituição da política externa e de segurança comum (PESC), a criação de um representante externo da UE, o "treaty making power" externo da UE, a aprovação da Carta de Direitos Fundamentais, etc. O recurso a uma explícita terminologia constitucionalista representou uma propositada vontade de se assumir como um passo qualitativo em frente na institucionalização da UE como poder político autónomo, embora sem prejudicar a existência nem o cerne da soberania dos Estados-membros (consagrando mesmo um direito de saída unilateral da UE).
Mas, independentemente deste tratado constitucional, desde há muito que a doutrina fala no "constitucionalismo" e no "direito constitucional" da UE. Já em 1981 o conceito de "constituição transnacional" foi invocado a propósito da então CEE. E desde essa altura a conceptologia constitucionalista tornou-se cada vez mais frequente, sobretudo depois do tratado da UE (1992). Existem hoje numerosos escritos sobre a "constituição europeia" e vários manuais de "direito constitucional europeu", incluindo em Portugal. O primeiro grande teorizador da constituição europeia entre nós foi aliás Francisco Lucas Pires, da Universidade de Coimbra, há quase uma década, antes de qualquer projecto de tratado constitucional.
A compreensão da CE/UE em termos constitucionais tornou-se inevitável praticamente desde o princípio, na medida em que ela não podia ser cabalmente concebida e compreendida em termos de direito internacional e de organização internacional, dada a existência de um poder legislativo e de um poder judicial próprio com incidência directa sobre os direitos e obrigações dos particulares (e não somente dos Estados). Depois, quer por via da jurisprudência criativa da Tribunal de Justiça (a quem se deve por exemplo a explicitação do princípio da primazia da ordem jurídica comunitária), quer sobretudo por via dos sucessivos avanços da integração europeia (ampliação de atribuições, decisões por maioria, eleição directa do Parlamento europeu, poderes legislativos deste, cidadania europeia, mercado único, moeda única, abolição das fronteiras, justiça e segurança interna, PESC, carta de direitos fundamentais, etc.), foram-se acentuando os traços insusceptíveis de serem compreendidos no quadro do direito internacional, reclamado por isso uma leitura em chave constitucional.
Porventura o principal impulso da CE/UE no sentido de uma entidade constitucional autónoma em relação aos Estados-membros consistiu na eleição directa do Parlamento europeu (acentuando a vertente não intergovernamental) e, depois, na criação da cidadania europeia (Tratado de Maastricht) e no desenvolvimento de uma teoria de direitos fundamentais face às instituições comunitárias (por acção da jurisprudência do Tribunal de Justiça e depois pela aprovação da Carta de Direitos Fundamentais). Por essas vias, a CE/UE deixou de ser somente uma associação/união de Estados, para passar a ser também uma união de cidadãos, com direitos protegidos contra as instituições da CE/UE. A CE/UE não é evidentemente um Estado, mas também (já) não é uma simples associação de Estados.
A ideia de que a noção de Constituição está exclusivamente vinculada à noção de Estado, não podendo ser usada em relação a entidades políticas trans-estaduais, está ligada à tradicional concepção ?vestfaliana? do Estado, como única entidade politicamente soberana na ordem externa. Porém, na actualidade, essa noção do Estado está ultrapassada e não resiste à emergência de estruturas supranacionais dotadas de alguns traços que tradicionalmente eram associadas à "estadualidade", como o poder legislativo, poderes judiciais, poderes fiscais, poderes de contratação internacional, separação de poderes, "rule of law", direitos fundamentais, "judicial review", etc.. Actualmente a noção de constituição e de constitucionalismo é relevante e fecunda em contextos muito mais amplos de que um estreito constitucionalismo "estatista" e nacionalista se agarra a defender.
Hoje penso que não foi vantajosa a utilização da noção de constituição a propósito do novo tratado da UE, que pouco acrescenta e que deu argumentos desnecessários aos nacionalismos constitucionais de todos os matizes. Mas, com ou sem tratado constitucional, o constitucionalismo europeu já aí está desde há muito, e veio para ficar.
(Público, 3ª feira, 14 de Junho de 2005)

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