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30 de abril de 2005

Trinta anos depois 

Por Vital Moreira

Ninguém que tenha vivido a jornada de 25 de Abril de 1975 jamais esquecerá a excitação do acontecimento. Um ano depois da acção do Movimento das Forças Armadas, e no cumprimento do seu principal compromisso desde a origem, realizavam-se as eleições para a Assembleia Constituinte, que aliás se contavam desde sempre entre os objectivos fundamentais da oposição antifascista. Era, por um lado, a confirmação popular da revolução; era por outro lado, o início da construção do novo edifício constitucional democrático.
Tinha sido um ano repleto de vicissitudes e de conflitos políticos, como é próprio dos períodos revolucionários, mas sem paralelo na nossa história política: o desmantelamento do aparelho político e repressivo da ditadura, o aparecimentos dos partidos políticos e dos movimentos sociais, a agitação social e política, as sucessivas atribulações políticas provocadas pelo primeiro Presidente da República (o golfe palaciano de Palma Carlos de Julho de 1974, a convocação da manifestação da "maioria silenciosa" de 28 de Setembro do mesmo ano e a aventura militar de 11 de Março), a multiplicação de governos promissórios (quatro em menos de um ano), o fim da guerra colonial e a independência das colónias, a polémica da "unicidade sindical" (preanunciando o duradouro conflito entre o PCP e o PS), a institucionalização do MFA e a criação do Conselho da Revolução, as nacionalizações a seguir ao 11 de Março, a celebração do Pacto MFA-partidos para enquadrar transitoriamente alguns aspectos da futura arquitectura constitucional.
Mas nada disso retirara importância nem expectativa às eleições para a Assembleia Constituinte, pelo contrário. Por um lado, tratava-se de apurar finalmente a verdadeira representatividade das diversas forças políticas, para além da sua capacidade de mobilização social ou sindical; por outro lado, tratava-se de dar expressão à legitimidade democrático-eleitoral, para além da legitimidade revolucionária que o MFA justamente reivindicava. E embora a Assembleia Constituinte a eleger estivesse limitada à função constituinte, continuando a funcionar paralelamente as instituições governativas estabelecidas nas leis constitucionais provisórias, a verdade é que era inevitável que o resultado das eleições e a composição da Constituinte não poderia deixar de condicionar a governação e a evolução política subsequente. Aliás, a tentativa de ignorar isso não constituiu um dos menores factores dos equívocos do "Verão quente" de 1975 e do desenlace de 25 de Novembro do mesmo ano.
Nunca tinha havido umas eleições assim em Portugal. Não era certamente a primeira vez que era eleita uma assembleia constituinte. Era mesmo a quarta vez que isso ocorria desde o início da era constitucional entre nós, depois das que elaboraram a Constituição de 1822, a seguir à revolução liberal de 1820, a Constituição de 1838, depois da revolução setembrista de 1836, e a Constituição de 1911, depois da revolução republicana de 1910. Mas nenhumas eram comparáveis com estas. Pela primeira vez, havia eleições por genuíno sufrágio universal, sem distinções de rendimento ou de riqueza, de instrução ou de sexo. Doutores e analfabetos, ricos e pobres, homens e mulheres puderam pela primeira vez participar numas eleições, sem as limitações que mesmo nos períodos do constitucionalismo liberal e republicano tinham restringido fortemente o sufrágio eleitoral e a representação democrática. Depois, após quatro décadas de regime autoritário e de eleições fictícias e manipuladas, eram estas as primeiras eleições genuinamente livres, pluripartidárias, no quando da liberdade de opinião e de propagandas política e eleitoral. Pela primeira vez na sua história os portugueses, como um todo, tinham a oportunidade de exprimir livremente a sua vontade política. A maciça participação eleitoral testemunhou esse momento singular da história política nacional. E os seus resultados influenciaram decisivamente não somente o conteúdo da Constituição mas também o futuro político da III República cujas instituições ela enformou.
Também nunca tinha existido em Portugal uma assembleia como a que resultou das eleições de 25 de Abril de 1975, no que respeita tanto à sua pluralidade político-partidária (da direita à extrema-esquerda) como à sua representatividade social (desde uma forte representação universitária aos proletários rurais). Só num aspecto a Constituinte reproduzia um dos traços mais atávicos da nossa cultura política, ou seja, no que respeita à escassa representação feminina. Com esse importante senão, nunca uma assembleia política fora tão representativa, no sentido amplo do termo, como a Assembleia Constituinte.
Para essa imagem da Assembleia Constituinte contou decisivamente uma decisão político-legislativa que muitas vezes se subestima (enquanto se sobrestima deliberadamente o Pacto MFA-Partidos, apesar do carácter parcelar e transitório deste), mas que se haveria de revelar determinante na configuração da Constituinte e do próprio regime constitucional que dela saiu. Trata-se da lei eleitoral para as respectivas eleições, elaborada com base no trabalho de uma comissão interpartidária ainda durante o ano de 1974, e que não mereceu a discussão pública que a sua importância mereceria.
De facto, qualquer manual de transição democrática mostra que entre as decisões mais importantes que um novo regime democrático tem de assumir consta à cabeça o regime eleitoral. Para haver uma assembleia constituinte, há que definir previamente o respectivo sistema eleitoral. A Assembleia Constituinte é de certo modo preconstituída pela lei eleitoral que preside à sua eleição. Na verdade, ao adoptar um sistema proporcional baseado em círculos eleitorais distritais e assente no monopólio partidário das candidaturas, a lei eleitoral foi determinante na formação política da Constituinte e da própria Constituição. Em primeiro lugar, tornou-a representativa exclusivamente dos partidos políticos; em segundo lugar, dificultou à partida a obtenção de uma maioria absoluta por um único partido; em terceiro lugar, porém, favoreceu relativamente os partidos mais votados, ao mesmo tempo que excluía a maior parte dos pequenos partidos, nomeadamente das forças políticas mais extremistas.
Não admira por isso que no final nenhum partido tivesse sozinho uma maioria de deputados, tornando obrigatórios compromissos interpartidários para aprovar todas as soluções constitucionais; que a maioria dos partidos políticos que pulularam depois do 25 de Abril, entre eles alguns dos mais activos na agitação revolucionária, tivessem ficado pura e simplesmente excluídos da representação em São Bento ou tivessem obtido uma representação tendencialmente marginal. Não é ousado dizer que, tivesse sido outra a lei eleitoral, e outra poderia ter sido a sua composição e diversa poderia ter sido a própria Constituição. Acresce ainda que, ao serem depois acolhidas na própria Lei Fundamental as principais opções da lei eleitoral para a Assembleia Constituinte (sistema proposicional, distritos eleitorais, monopólio partidário de candidaturas, etc.), esta prefigurou um dos principais fundamentos do novo regime constitucional.
Conto-me entre os que participaram activamente nas eleições de 25 de Abril de 1975 e que, no seguimento delas, partilharam dessa aventura que foi a elaboração, a um tempo exaltante e atribulada, da Constituição de 1976. Revisitando o passado, não é seguramente por não me rever em todas as posições que nessa altura defendi que deixo de sentir um enorme orgulho e até alguma emoção pela honra que tive em ter sido um dos constituintes de 1975-76. São momentos singulares esses em que a nossa história pessoal compartilha momentos conformadores da história política nacional.

(Público, 3ª feira, 26 de Abril de 2005)

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