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13 de março de 2005

Privilégios corporativos 

Por Vital Moreira

Há alguns dias os jornais davam conta da falta de farmácias em várias das novas áreas residenciais de Lisboa. Ora, sabendo-se que o comércio farmacêutico é um dos mais seguros e rendosos negócios entre nós, a explicação para a carência de farmácias só pode dever-se ao nosso obsoleto regime de propriedade de farmácias, que faz dela um direito exclusivo dos farmacêuticos.
Essa prerrogativa corporativa incentiva naturalmente o racionamento das farmácias, de modo a garantir uma confortável clientela a cada estabelecimento, assegurando uma espécie de monopólio territorial de cada farmácia dentro de uma determinada área. Essa é a principal função dos requisitos estabelecidos na lei quanto às áreas territoriais e população mínima para cada farmácia.
O exclusivo da propriedade das farmácias para os farmacêuticos, que, por influência francesa, se implantou sobretudo nos países do sul da Europa, poderia ter tido alguma justificação quando a maior parte dos medicamentos era de produção oficinal, preparados no próprio estabelecimento, e quando se mantinha a concepção pré-liberal de que a reserva de propriedade corporativa era uma garantia de segurança e qualidade. Hoje, porém, que as farmácias são essencialmente estabelecimentos de comercialização de medicamentos fabricados em laboratórios industriais, a reserva de propriedade deixou de ter qualquer sentido razoável. Para a salvaguarda da qualidade e da segurança basta que as farmácias tenham de ser dirigidas tecnicamente por farmacêuticos. Nada justifica que só os farmacêuticos possam ser donos delas.
Além disso, a reserva de propriedade e as demais restrições à criação de farmácias são responsáveis pela escassez de farmácias, pelos preços cartelizados dos medicamentos, pelo arcaísmo e falta de incentivo à renovação dos estabelecimentos. Com cerca de 2500 farmácias em Portugal, correspondendo a uma média de quase 4000 pessoas para cada uma, o nosso país está bem distante dos padrões internacionais nesta matéria.
O "malthusianismo" na criação de farmácias faz naturalmente empolar artificialmente o seu valor comercial, como revelam os elevados preços de trespasse correntes, dificultando o acesso de novos farmacêuticos à propriedade de farmácias, salvo por herança. Além disso, o exclusivo profissional da propriedade cria situações socialmente injustificáveis quanto à herança de farmácias (no caso de não haver um herdeiro que seja farmacêutico) e quanto à escolha forçada da licenciatura em farmácia por parte dos filhos de proprietários de farmácias. De resto as disfunções do sistema de propriedade reservada geram numerosas situações irregulares, com farmacêuticos pagos para darem o nome como proprietários fictícios de estabelecimentos pertencentes a outrem. Não é por acaso que o exclusivo corporativo da propriedade das farmácias não tem paralelo entre nós, tendo fracassado há alguns anos uma tentativa dos médicos-analistas de estabelecer em seu favor um exclusivo da propriedade dos laboratórios de análises clínicas (aí para afastar sobretudo os farmacêuticos...).
Por último, o monopólio profissional da propriedade das farmácias é o principal responsável por uma confortável e injustificada "renda", aliás garantida por generosas margens de comercialização oficialmente estabelecidas, em prejuízo dos consumidores e dos contribuintes (que suportam por via dos reembolsos do SNS boa parte da factura dos medicamentos).
Por tudo isso a abolição do exclusivo da propriedade farmacêutica ? sem prejuízo das necessárias incompatibilidades (médicos, laboratórios farmacêuticos, etc.) e da estrita limitação do número de farmácias possuídas por uma mesma entidade ?, bem como uma moderada flexibilização dos actuais requisitos para a criação de novas farmácias (população e de distância mínimas), ambas estas medidas se afiguram indispensáveis para melhorar o actual estado de coisas.
A necessária reforma do sistema de saúde passa também pela reforma da actual regulação farmacêutica. De resto, ainda no princípio do corrente ano, o relatório da OCDE relativo ao nosso país punha o dedo na ferida de forma muito clara. Para reduzir a crescente factura farmacêutica do sistema de saúde entre nós, o relatório, entre várias outras medidas (abolição das margens fixas de comercialização, substituição dos medicamentos de marca por genéricos, autorização de venda fora das farmácias dos medicamentos que não necessitam de prescrição médica), preconizava explicitamente a redução das actuais restrições ao acesso à propriedade farmacêutica.
Chegou a altura de encarar a sério a necessária mudança. É óbvio que as corporações profissionais do sector não vão aceitar de bom grado a perda de um privilégio tradicional, que vale muito dinheiro e poder. Mas não pode adiar-se mais a opção entre o arcaísmo e a modernização do sector, entre a renda garantida de poucos e os interesses de todos, entre as vantagens patrimoniais de uma categoria profissional e a sustentabilidade do sistema nacional de saúde.

(Público, 3ª feira, 22 de Julho de 1998)

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