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1 de março de 2005

O novo governo e os "boys" do anterior 

por Vital Moreira

É sempre assim quando há mudança da cor política do governo. O que sucede com os numerosos titulares de cargos públicos de livre nomeação designados pelo anterior governo? Podem os novos ministros demitir livremente esse pessoal da confiança pessoal ou política dos seus antecessores? Devem os titulares desses cargos colocar o seu lugar à disposição, ou antes esperar que sejam exonerados?
Com as alterações do governo de Durão Barroso - afastamento do concurso para a nomeação dos directores de serviço e cargos afins -, o número dos cargos de livre nomeação política, directa ou indirecta, aumentou ainda mais, na administração central e desconcentrada do Estado. São desde logo os directores-gerais e equiparados, os directores regionais, os membros dos órgãos de direcção de institutos públicos, os membros da administração das empresas públicas, os membros de variegadas comissões e organismos mais ou menos desconhecidos. Esses cargos estão fora da carreira da função pública. Salvo os casos de organismos de natureza técnica, a escolha tem como critério mais relevante a afinidade partidária e confiança política (quando não o mais despudorado nepotismo).
Como se sabe, em diversos países (por exemplo os Estados Unidos) vigora um regime de "spoil system", segundo o qual a mudança de governo implica a cessação automática dos mandatos dos agentes da administração de confiança política, sem necessidade de uma exoneração expressa, para permitir a sua substituição por pessoal em consonância com o novo poder. Quem ganha o poder tem o direito de ocupar os lugares de comando da administração. Não se trata somente de dar um "prémio" ao partido vencedor mas também de garantir a prossecução e execução fiel do programa do novo poder.
Não é esse o regime prevalecente entre nós. Embora se trate de cargos de duração limitada e exoneráveis a todo o tempo (fora os casos de organismos independentes, cujos dirigentes são em princípio inamovíveis), existem geralmente dois importantes obstáculos. Por um lado, a destituição carece por vezes de justificação, sob pena de invalidade; por outro lado, em muitos casos, ela acarreta para o Estado uma obrigação de indemnização a favor dos dispensados, que pode ir até um ano de remuneração e envolver montantes muito consideráveis.
Em geral, a cessação do mandato de um governo não acarreta automaticamente o termo do mandato dos cargos de confiança política (com a ressalva dos membros dos gabinetes ministeriais e equiparados). Também nunca se criou entre nós uma prática generalizada de os próprios colocarem esses cargos à disposição dos novos ministros. Pelo contrário, a situação mais comum é os interessados deixarem-se ficar, à espera de continuarem no exercício do cargo até ao fim (e quem sabe serem reconduzidos...), ou serem expressamente exonerados a troco de confortável indemnização.
Na prática sucede que esse "dossier" acaba por ser um dos mais embaraçosos de cada novo governo, pressionado por um lado pela pressa dos candidatos do novo poder em ocupar esses lugares e por outro lado pela resistência dos incumbentes em abandoná-los de bom grado e sem compensação (saindo muitas vezes sob protesto contra um alegado "saneamento" por motivos políticos...). Apesar de tudo, um certo espírito de cumplicidade de "bloco central" entre o PS e o PSD tem permitido aos governos de cada um deles manter pessoal da esfera política do outro em certos sectores.
Desde há muito que defendo a alteração desta situação, em favor de uma mais assumida ruptura e responsabilização política. Por exemplo, no estudo e projecto de lei-quadro sobre os institutos públicos, que elaborei há uns anos para o segundo governo de Guterres, propus expressamente a livre exoneração, sem necessidade de fundamentação, dos membros da direcção desses organismos da administração indirecta do Estado, salvo naturalmente nos casos dos entes administrativos independentes, que por definição devem ser irremovíveis no decurso do mandato. E meditando agora de novo sobre o assunto não sei mesmo se não se deveria seguir uma solução mais radical, estabelecendo a cessação automática dos mandatos de confiança política, sem necessidade de exoneração expressa (e sem prejuízo naturalmente da possibilidade de recondução). No entanto, a lei-quadro dos institutos públicos entretanto publicada estabeleceu a livre exoneração, mas com direito à indemnização até 12 meses.
De facto, não parece razoável que um novo governo, para não suportar os custos financeiros e políticos de uma exoneração maciça, se veja constrangido a continuar a trabalhar com pessoal dirigente da confiança pessoal e política da equipa anterior, tal como não parece curial que esses dirigentes se vejam tentados a continuar a colaborar com os novos ministros, com orientações diferentes das suas, só para obrigar o novo governo a escolher entre mantê-los "a contrecoeur" ou exonerá-los a troco de uma choruda indemnização, que muitas vezes se afigura um verdadeiro "enriquecimento sem causa". Não parece que isso favoreça a motivação e a lealdade dos dirigentes.
Impõe-se por isso repensar globalmente esta matéria, estabelecendo uma delimitação clara dos cargos de confiança política (reduzindo o seu número) e optando por uma solução de caducidade automática desses mandatos, aquando da substituição do ministro respectivo, ou pelo menos de livre revogabilidade a todo o tempo, sem condições nem indemnização (salvo um módico "subsídio de reintegração" na actividade anterior, por exemplo um ou dois meses suplementares de vencimento). Entre os casos abrangidos, devem incluir-se todos os cargos directamente dependentes do governo e de livre nomeação governamental, tal como os acima referidos, ressalvando porém os cargos de natureza essencialmente técnica, bem como os organismos independentes, nomeadamente as "entidades administrativas independentes" (nomeadamente o Banco de Portugal e as demais autoridades reguladoras independentes, cujo regime aliás deveria ser estabilizado numa lei-quadro específica).
Ponto controverso pode ser o das empresas públicas. Na minha perspectiva, a sua administração executiva deveria ser intrinsecamente profissional, sendo os seus administradores nomeados pelo seu mérito e não por motivos de confiança política. Nesse quadro, o controlo do governo sobre o sector empresarial do Estado não deveria ser feito por meio da dependência política daqueles mas sim por via da adequada superintendência e tutela ministerial, incluindo a definição governamental das "orientações estratégicas" de cada empresa, incumbência aliás prevista na lei-quadro das empresas públicas de 1999, mas que não tem sido minimamente implementada. Contudo, em vez dessa metodologia formal, objectiva e transparente, continua a privilegiar-se a relação de confiança pessoal e/ou política. Aliás, é de recordar que a lei das empresas municipais de 1998 estabelece que o mandato dos respectivos corpos gerentes coincide com o dos correspondentes órgãos autárquicos, o que quer dizer que aquele caduca com a cessação do mandato dos titulares destes.
Seja qual for a delimitação dos cargos a abranger, afigura-se que a situação de indefinição e incoerência vigente não deve permanecer. Mesmo que sem efeitos retroactivos, existe toda a vantagem em reequacionar esta questão, para que ela não volte a repetir-se no futuro sempre que há mudança de governo. Professor universitário

Nota: Este texto já foi aqui publicado em 9 de Abril de 2002, há quase três anos, por ocasião da passagem do governo de Guterres para o de Durão Barroso. Infelizmente só tive de alterar as referências contextuais. A situação só mudou para pior.

(Público, 3ª feira, 1 de Março de 2005)

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