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15 de fevereiro de 2005

Do Bom Governo 

Por Vital Moreira

O principal que está em causa nestas eleições são coisas simples da governação: seriedade, competência, carácter, responsabilidade, ética política, sentido de Estado. Ou seja, tudo o que o Governo cessante fez questão de não ter. O resto virá por acréscimo. São qualidades que não se decretam. Têm mais a ver com a atitude e a cultura política dos partidos e dos governantes. Mas existem mecanismos que podem ajudar a ter uma governação mais decente, mais transparente e mais responsável.

Em Espanha o Governo socialista de J. L Rodríguez Zapatero comprometeu-se a seguir um "código de bom governo" (nome que têm os "códigos de conduta" no país vizinho), invocando as melhores práticas do sector privado (códigos de conduta das empresas) e das democracias mais avançadas. Juntamente com tal código, o executivo espanhol propõe-se ampliar o regime de incompatibilidades e estabelecer o escrutínio parlamentar prévio para os candidatos à nomeação dos principais titulares de altos cargos públicos do Estado e da administração em geral. Esses três mecanismos visam fomentar a transparência e a responsabilidade do Governo e da administração.

No que respeita ao "código de bom governo" propriamente dito, entre as obrigações nele contidas, contam-se a dedicação ao serviço público, devendo os altos cargos da administração abster-se de aceitar cargos ou postos directivos em organizações que limitem a disponibilidade e dedicação ao cargo público; a transparência informativa, tendo obrigação de proporcionar informação objectiva do funcionamento dos serviços aos cidadãos; a austeridade no uso do poder, evitando qualquer manifestação externa de ostentação; a proibição de aceitar presentes, favores, serviços ou outras prestações económicas que possam condicionar a liberdade do exercício das funções públicas; a supressão das formas de tratamento cerimonioso, que se limitarão ao uso das formas "senhor/senhora"; a protecção e respeito da "igualdade de género", assegurando uma equilibrada participação feminina. O Código aplicar-se-á desde já aos membros do Governo e aos altos cargos da administração, aos gestores das empresas públicas, dos institutos e fundações públicos e das entidades reguladoras e de supervisão.

No que se refere à revisão do regime de incompatibilidades, estabelece-se a dedicação exclusiva aos cargos públicos, com proibição de desempenho de qualquer outro cargo público ou privado, bem como várias outras medidas tendentes a evitar conflitos de interesses entre o interesse público e os interesses particulares e a punir a sua violação. Entre essas medidas, regista-se a publicação das declarações de património e rendimentos dos titulares de cargos públicos no "Diário" oficial; a obrigação de os mesmos entregarem a gestão dos seus valores mobiliários a fundos de gestão "cegos" sem conhecimentos dos interessados; a sanção dos prevaricadores com a interdição de nomeação para novos cargos por um período de dez anos; a criação de um observatório de conflitos de interesses para monitorizar a situação.

Por último, propõe-se a instituição de um escrutínio parlamentar prévio à nomeação de muitos titulares de altos cargos públicos. Assim deverão comparecer perante o Parlamento por exemplo os candidatos à nomeação para procurador-geral da República, os juízes do Tribunal Constitucional, o provedor de Justiça e os membros do Tribunal de Contas. E deverão comparecer perante a comissão parlamentar competente os candidatos a membros das entidades reguladoras e supervisoras, da comissão de protecção de dados, do conselho económico e social e da Radiotelevisão espanhola. Do que se trata é de obrigar os candidatos para os cargos referidos a submeterem-se a uma "sabatina" parlamentar, permitindo conhecer publicamente currículo, habilitações, competências e idoneidade dos indigitados para os cargos de que são postulantes.

Com as devidas adaptações, todas estas medidas são susceptíveis de adopção em qualquer democracia que preze a confiança dos cidadãos. Código de ética política, separação entre o interesse público e os interesses pessoais, escrutínio público das nomeações - eis os ingredientes que alicerçam a responsabilidade e confiança política e que podem constituir poderosos antídotos contra o abuso de poder, a corrupção e o favoritismo, o aproveitamento do poder público em benefício pessoal e o tráfico de influências. Há uma preocupação comum a todas essas três iniciativas: a ideia de que não basta aos políticos e titulares de cargos públicos serem honestos e dedicados à causa pública, mas que também importa afastar preventivamente todos os factores de suspeição, nomeadamente no que respeita ao autofavorecimento pessoal à custa do interesse público.

O que distingue os partidos e os governos não tem a ver somente com as diferentes opções e acções políticas, mas também com o modo de governar e de se relacionar com os cidadãos. A seriedade, o carácter, a respeitabilidade, a contenção, a ética do serviço público, o sentido de responsabilidade são cada vez mais traços distintivos da "governance" democrática, que a distingue das formas autoritárias ou populistas. Não bastam as constituições e as leis, nem os tribunais e os parlamentos para controlar o executivo e a administração. Impõe-se a definição e o cumprimento de normas de ética política, que sirvam de auto-regulação dos governos e da administração pública, cuja observância possa servir de padrão de aferimento da opinião pública em geral e dos média e dos grupos de interesse público em especial.

A prevenção e eliminação de conflitos de interesses está no cerne da ideia de responsabilidade política e da luta contra o aproveitamento privado ou partidário dos cargos públicos (incluindo o financiamento ilícito dos partidos). Tão importantes como o estabelecimento de incompatibilidades é o mecanismo da declaração pública de interesses, permitindo evitar situações de legítima suspeição de parcialidade nas decisões públicas. Quando os governos são cada vez mais constituídos por pessoas oriundas do mundo empresarial e dos negócios (incluindo os grandes escritórios de advogados), é essencial o conhecimento público dos interesses que podem condicionar as decisões governamentais. A alternativa é a "berlusconização" da política e a degradação da democracia.

Desnecessário se torna sublinhar a importância do exame parlamentar prévio dos candidatos indigitados para os mais altos cargos públicos, que é corrente nos sistemas de governos presidencialistas, mas que agora vai sendo importado para os sistemas de governo parlamentar. Infelizmente entre nós tem havido uma enorme resistência a esta figura, que tem sido rejeitada mesmo no caso de nomeação governamental de entidades administrativas independentes. É mais que tempo de modificar esta situação. O exemplo espanhol pode servir de desafio. E em Portugal, nas vésperas de eleições parlamentares, o provável partido vencedor bem podia assumir antecipadamente compromissos fortes nesta matéria. Quem sabe se não seria um bom argumento adicional para conquistar a ambicionada maioria absoluta?

Blogposts (causa-nossa.blogspot.com)

1. Maioria absoluta = responsabilidade absoluta; maioria relativa = responsabilidade relativa.

2. Os "fretes" de Miguel Cadilhe e de Rebelo de Sousa na campanha do PSD nesta fase tardia do campeonato eleitoral são actos de indescritível reserva mental (ambos só podem desejar uma severa derrota de Santana Lopes) e só podem querer dizer que a era Santana Lopes está a chegar ao fim e que a grelha de partida para a corrida à liderança do PSD depois de 20 de Fevereiro vai ser muito disputada. Marques Mendes, até agora o único a manter-se em campo, mas a jogar por fora, vai ter farta concorrência. É de apostar que todos têm as "quotas em dia" (Pacheco Pereira "dixit").

(Público, Terça-feira, 15 de Fevereiro de 2005)

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