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2 de setembro de 2004

O betão, o 10 de Junho e a gestão autárquica 

Se prestarmos atenção, verificaremos que as autarquias se confrontam com escolhas tendencialmente mais importantes para a vida dos cidadãos do que os governos centrais. Enquanto estes, em perda progressiva de terreno, exercitam a pouca margem de manobra que lhes resta em acrobacias fiscais e na gestão dos sistemas pesados, as regiões e os municípios vêem as suas competências progressivamente alargadas, passando a influir cada vez mais no quotidiano dos cidadãos e na sua qualidade de vida. Para o bem e para o mal, detêm hoje amplos poderes na gestão da coisa pública, administrando o território e prestando serviços de interesse geral. Por isso, devemos ser especialmente exigentes para com a administração local, confrontando-a com as suas múltiplas insuficiências, erros e omissões (venalidades à parte). É que algo tem de mudar na gestão autárquica em Portugal, sob pena de as gerações futuras nos virem acusar, a justo título, de termos assistido impávidos à transformação do país num rectângulo inabitável.

Um dos primeiros males a erradicar é a cultura e prática do betão. Bem sei que estávamos carentes de infra-estruturas - e ainda estamos, não se devendo regatear esforços no alargamento e consolidação das redes viárias - e que o sector da construção civil tem sido um amigo fiel dos governantes e dos autarcas, contribuindo em tempos difíceis para a manutenção dos níveis de emprego e para o equilíbrio dos cofres partidários. Condecore-se então a classe no 10 de Junho, distribuam-se tantas ordens de mérito industrial quantos os empreiteiros deste país e dê-se-lhes por um dia o prazer do reconhecimento social que tão avidamente procuram. Finda a festa, juízo. Portugal já é um case study em matéria de construção civil. Somos, em toda a Europa, quem mais constrói prédios e menos mantém os existentes. Estamos no top ten mundial em posse de habitação própria e para lá caminhamos alegremente no que respeita às casas de fim-de-semana. Temos os melhores estádios do mundo, resorts turísticos de seis estrelas, condomínios de luxo pelos quatro cantos. Temos planos de ocupação da orla costeira que, a prosseguirem, deixarão o Oeste, o Alentejo e o Algarve completamente irreconhecíveis. Enquanto as nossas cidades batem todos os recordes de casas devolutas, o betão progride, imparável, à conquista de território livre de encargos.

Será que os poderes municipais não estão conscientes dos perigos do cimento e da descaracterização urbanística e territorial que acarretam? Suponho que sim, pelo menos os que ainda se preocupam minimamente com a qualidade de vida dos cidadãos. Só que a tentação é demasiado grande - quanto mais metros quadrados de construção, maiores as receitas municipais. É este jogo orçamental perverso (além de outros jogos inconfessáveis) que corrompe a boa política e destrói os esforços de qualificação urbanística e ambiental, vergando-os aos interesses da fileira imobiliária. Não possuo a fórmula milagreira, mas sei que o actual sistema é pernicioso e que é necessário encontrar um melhor.

Portugal não é, aliás, um caso virgem nesta matéria, bem pelo contrário. São muitos os países do hemisfério norte que se debatem com problemas do mesmo tipo, a começar pelos Estados Unidos, onde as contradições entre o novo e o "velho", o público e o privado, o rural e o urbano, têm vindo ultimamente a atingir proporções dificilmente imagináveis. O aperto orçamental a que os estados da União e os municípios estão sujeitos tem-nos levado ao uso e abuso da figura do domínio administrativo ("eminent domain"), que permite às autarquias tomarem posse legal, mediante indemnização, de qualquer espaço privado desde que aleguem estar a agir no sentido da valorização do património e, assim, no do interesse público (!). Um bairro residencial do tipo Campo de Ourique ou Restelo pode ser declarado ultrapassado ("blighted") pelo mayor de uma cidade, arrasado em três tempos e substituído por um luxuoso condomínio em altura previamente atribuído a um promotor imobiliário. Tudo isto às claras (como é bonita a transparência...), em nome da eficiência e das receitas municipais.

Estou convicto de que um dos principais combates da cidadania se travará no terreno do ordenamento territorial e do meio ambiente. A luta pela nova moeda de troca, o metro quadrado, não é do interesse público. Se é certo que os planos directores municipais necessitam de acertos e, em muitos casos, de revisões profundas, o sentido da mudança não deverá ser o da famigerada alteração do uso de solos para fins especulativos. O que faz falta são mais e melhores espaços públicos, mais zonas verdes e de lazer, melhor recuperação urbana, melhor arquitectura. Não é pedir muito. No fundo, só queremos que os nossos impostos e taxas municipais se traduzam em melhor qualidade de vida.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 2 de Setembro de 2004

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