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4 de junho de 2004

Má educação  

Vicente Jorge Silva

Em "Má Educação", o último Almodóvar, as laboriosas marcas do espartilho conceptual do argumento (o filme dentro do filme, a duplicação das personagens, o jogo das identidades equívocas) acabam por abafar o golpe de asa criativo que tinha feito voar as suas duas obras anteriores: "Tudo Sobre a Minha Mãe" e "Fala Com Ela".

Almodóvar quis sublimar uma obsessão freudiana da sua história pessoal que há longo tempo o perseguia. Por isso, ao investimento nas emoções do melodrama preferiu aqui a intelectualização de um frio distanciamento. Mas, com Almodóvar, a decepção é sempre relativa. E "Má Educação" é um filme que trata assuntos sórdidos com uma inteligência, uma contenção, uma recusa de demagogia, que não deixam lugar a mensagens rudimentares.

Só a infinita estupidez de influentes meios eclesiásticos fez com que "Má Educação" beneficiasse de uma intensa promoção pela negativa (e sabe-se que quanto mais o fruto é proibido tanto mais é apetecido). Tomou-se "Má Educação" por um manifesto simplista contra a hipocrisia da Igreja Católica em matéria de internatos escolares, sexualidade e pedofilia (tema que está no centro do filme mas não resume, longe disso, a sua complexidade). Obviamente, isso favoreceu a campanha de lançamento de "Má Educação". Com o seu sagaz instinto publicitário, Almodóvar aproveitou uma onda que, em Portugal, pode ser facilmente cavalgada no processo Casa Pia. E como Deus escreve direito por linhas tortas, "Má Educação" servirá para evocar um dos aspectos que acabou por ser praticamente escamoteado desse caso: o papel da Casa Pia e outras pias instituições congéneres na "má educação" administrada às crianças e adolescentes entregues à sua guarda.

Precisamente, poucos dias depois da estreia de "Má Educação", a juíza Ana Teixeira e Silva, que sucedeu a Rui Teixeira na instrução do processo Casa Pia, pronunciou sete arguidos e despronunciou outros três que haviam sido acusados de atentados sexuais contra menores. Atendendo à notoriedade de algumas figuras envolvidas, é natural que todo o mundo -- a começar pelos media -- tenha concentrado a sua atenção nos nomes dos protagonistas e nos motivos invocados para a sua comparência ou não na barra do tribunal. Os aspectos judiciais e também políticos do caso -- que são, aliás, da maior relevância -- fizeram no entanto esquecer uma referência da juíza à dimensão assustadora que os crimes pedófilos haviam atingido no interior da instituição à qual tinham sido confiadas gerações sucessivas de crianças e adolescentes desde muito antes do 25 de Abril. O folhetim das perversões sexuais praticadas contra inocentes indefesos atravessam a ditadura e o regime democrático. Resta-nos apenas a consolação de só em democracia ter sido possível enfrentar o sinistro segredo - como acontece, aliás, no filme de Almodóvar. À força de falar-se de rede pedófila -- que a investigação judicial, escandalosamente parcial e incompetente, foi incapaz de reconstituir -- e de se especular sobre os nomes dos famosos e poderosos nela comprometidos, perdeu-se a noção da origem do mal. Um mal que, como mostra o filme de Almodóvar (embora essa seja, insisto, apenas uma das faces de "Má Educação"), põe em causa a natureza de entidades a quem o Estado e a Igreja -- coligados ou separados -- atribuíram a protecção e formação de menores desprotegidos. Se analisarmos as proporções internacionais desse escândalo (que abalou os alicerces da Igreja Católica nos Estados Unidos, por exemplo) verificamos a existência de um padrão comum de situações e comportamentos, pondo a nu a hipocrisia e a podridão moral no seio de instituições que era suposto representarem valores inatacáveis de vocação pia e boa-consciência social. Ora, o que está em causa na Casa Pia é a sua própria natureza como instituição. A "má educação" deriva da lógica moral de um universo concentracionário (seja ele qual for), do mesmo modo que o vício medra nas encenações hipócritas da virtude.

Mas o caso Casa Pia despoletou e fez convergir outros sintomas de "má educação". Vimos, assim, que a justiça e uma parte dos media estavam sintonizados e objectivamente cúmplices no culto do "voyeurismo" mais sórdido suscitado pelo escândalo. Chegou-se à ponta do icebergue mas não à sua parte oculta e submersa. Justiça tabloide e jornalismo tabloide deixaram-se embriagar pela caça aos notáveis, aos políticos e aos poderosos, numa vindicta de óbvia arbitrariedade selectiva. Só que tudo isso resultou numa magra colheita simbólica que não confirmou a extensão da rede pedófila anunciada, além de revelar uma fixação obsessiva em personalidades da oposição, desvalorizando ou escamoteando as suspeitas e indícios relativos a figuras da maioria governamental. Entretanto, porém, tinham ocorrido atentados sistemáticos ao Estado de direito: prisões preventivas abusivas, escutas telefónicas indiscriminadas envolvendo o maior partido da oposição, listas de identificação de suspeitos potenciais estabelecidas com critérios absurdos. A paranóia persecutória da justiça e dos media tabloidizados desenvolveu-se em total impunidade, até se perceber que a montanha tinha parido um rato e que, à custa disso, o sistema judicial, girando em roda livre, se aproximava do colapso. Pretende-se, agora, que o despacho de pronúncia da juíza Ana Teixeira e Silva repõe um pouco de ordem no caos precedente - e que o equilíbrio das razões desse despacho absolveria o caos motivado pela "má educação" da justiça. Nada mais errado. O despacho da sucessora de Rui Teixeira prova precisamente o contrário: a subjectividade das razões judiciais é de tal modo aleatória e errática que nos faz duvidar da própria racionalidade da justiça.

Por coincidência, o tema da "má educação" acabou também por estar em foco na campanha para as eleições europeias. António José Teixeira - o mais equilibrado e isento dos comentadores políticos televisivos - defendia há dias, na SIC-Notícias, que não se deveria atribuir demasiada importância à deriva da linguagem (ou seja, dos insultos) nesta campanha, até porque já havia precedentes na matéria (como o inenarrável manifesto Candal contra Paulo Portas) e porque, no fundo, se tratava de uma estratégia da coligação da direita para desvalorizar umas eleições cujo resultado ameaça ser-lhe muito desfavorável. Percebo esses argumentos mas não os partilho. Por um lado, porque o manifesto anti-Portas constituiu um acto puramente isolado e sem conexão com o tom da campanha onde era suposto inserir-se. Mas sobretudo porque a convergência reiterada dos insultos -- visando características físicas de Sousa Franco -- não pode ser ocasional, nem gratuita, nem meramente "estratégica".

Por mais genuínas que consideremos as desculpas apresentadas por João de Deus Pinheiro acerca disso, a sua boa educação de "gentleman" contrasta, de modo claramente excêntrico, com a má educação ostensiva de alguns que participam com ele na batalha eleitoral. Ora, essa má educação é um sintoma de degradação dos costumes de civilidade política, que tem sido possível constatar, recentemente, no comportamento de alguns deputados da maioria parlamentar e figuras relevantes do Governo, como Manuela Ferreira Leite. O "ajardinamento" de linguagem do PSD, que referi na minha crónica da semana passada, é um facto que merece reflexão. Até porque coincide, significativamente, com a crescente tutela ideológica do PP sobre a coligação governamental, como vem sendo possível observar no Parlamento. A má educação assume muitas formas, desde o filme de Almodóvar, passando pelo caso Casa Pia, até ao estilo da campanha eleitoral da coligação Força Portugal. Mas essas formas disfarçam realidades que se querem ocultas e são, quase sempre, inconfessáveis.

(Diário Económico, 4 de Junho de 2004)

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