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28 de maio de 2004

Os meus enganos e o PSD ajardinado  

Vicente Jorge Silva

Em mais de quarenta anos a escrever para os jornais enganei-me muitas vezes mas, felizmente, ainda mais vezes tive dúvidas que me permitiram prevenir outros enganos.
Não me lembro, pelo menos em tempos recentes, de um engano tão embaraçador como o da minha crónica da semana passada neste jornal. Mas também penso que só uma permanente disponibilidade para a auto-ironia nos salva do ridículo. Esse ridículo que cobre os que se pretendem imunes aos erros, aos enganos e até às dúvidas (como agora acontece com todos aqueles que juraram sobre o seu cadáver a favor da bondade da invasão e ocupação do Iraque e teimam em não reconhecer o desastre absoluto em que essa aventura redundou). Quanto a mim, confesso: caro leitor, enganei-me. Se for absolvido do ridículo, já me sentirei mais confortado no meu embaraço.
Em todo o caso, não encontro uma explicação verdadeiramente satisfatória para o facto de ter previsto, na semana passada, que o congresso do PSD iria resultar num novo duelo entre Santana Lopes e Durão Barroso, com importantes repercussões no maior partido do Governo e no resultado das eleições europeias. É certo que não alimentava, à conta disso, qualquer ilusão triunfalista sobre um próximo sucesso eleitoral da oposição e, em particular, do PS. Pelo contrário, pensava (e continuo a pensar) que as eleições de 13 de Junho têm sido abordadas de forma particularmente medíocre, mesquinha e falha de imaginação pela generalidade das forças políticas (basta ver os cartazes da campanha e o pingue-pongue dos "cartões" futebolísticos entre o PS e a direita, a inevitável "outra política" do PCP ou o oportunismo da "guerra ao desemprego" do Bloco de Esquerda). A ausência das questões que têm a ver com a nossa (nova) relação com a Europa dos 25 e o peso esmagador da abstenção prevista para 13 de Junho esvaziam o significado específico do escrutínio, seja qual for o efeito do contrabando eleitoralista dos "cartões" exibidos na propaganda.
Não tomei, assim, quaisquer eventuais desejos pela realidade, ao contrário do que pretendia um amigo meu com simpatias de direita, comentando as minhas expectativas frustradas acerca do duelo Santana-Durão - e quando se tornou claro, em Oliveira de Azeméis, que o aguerrido edil da capital metera a viola no saco sobre o psicodrama das presidenciais. Simplesmente, não extraí o prudente benefício das dúvidas que normalmente tenho para prevenir os enganos. Não ponderei, por exemplo, o demolidor efeito mediático - e, logo, político - que a boda real espanhola teria sobre acontecimentos menos sugestivos e "glamourosos", roubando assim o palco a outras veleidades de protagonismo (de que não abdica Santana Lopes). Mas, sobretudo, não soube avaliar a actual fragilidade política em que se encontra o autarca de Lisboa depois da aventura do túnel do Marquês, que ele não pode permitir-se abandonar no meio do caos e partir, ladino, a caminho de Belém.
Santana mostrou-se refém desse enredo funesto da sua presidência lisboeta e limita-se agora a engendrar estratagemas tácticos que lhe cubram a sobrevivência política. Mas o facto de se ter apagado - e de que maneira! - na encenação "soviética" de Oliveira de Azeméis, depois de Durão Barroso lhe retirar tão ostensivamente o tapete das presidenciais, significa uma alteração inédita no duelo pelo poder na arena "laranja". Em todo o caso, o PSD bem-comportado, unanimista e pantanoso que emergiu do último congresso soa definitivamente a falso e deixa no ar um perfume de ordem crepuscular e apodrecida (como deixou o PS no último congresso de Guterres). Um PSD em ebulição, partido por dentro, mas irrequieto e vivo poderia sempre encontrar novas energias para recuperar de um desaire nas europeias. O sono dos justos a que se entregou é prenúncio de tempestades bem piores.
Previ (revi) um cenário clássico, jogando com dados que, afinal, se revelaram enganadores. Mas se não me tivesse enganado talvez houvesse motivos para pensar que o PSD saído de Oliveira de Azeméis seria um partido mais clarificado internamente e menos auto-iludido e autista do que aquele que se limitou a compor um apócrifo retrato de família. Aliás, na sombra do unanimismo artificial agitam-se já os habituais "trouble-fête", como o inevitável Alberto João Jardim, agora também putativo pré-candidato a Belém para barrar o caminho a Cavaco. Tanta corda têm dado a Jardim que ele se converteu já em inspirador da grande miragem da mexicanização do PSD nacional: um partido único, dispensando concorrência e alternâncias, prometido a um poder "para sempre" (como o próprio Balsemão, esse campeão da social-democracia, chegou a sugerir, quando profetizou a perenidade do jardinismo na Madeira). Só que o PRI acabou por perder o poder no México quando o seu reinado já parecia de pedra. E toda a gente sabe como e porquê o mexicanismo jardinista perdura há quase trinta anos na Madeira, mesmo os que lhe celebram as excelências paradisíacas?
Neste partido tão esplendidamente pacificado e unânime em torno do chefe, os tiques de sectarismo e sobranceria autoritária cultivados pelo tiranete do Funchal começam a fazer escola. Desde logo, Durão Barroso não pestanejou ao denunciar as ameaças às liberdades democráticas nos Açores, ao mesmo tempo que incensava os feitos épicos de Jardim, esse excelso penhor de democraticidade exemplar e eterna. Já não há decoro que previna as caricaturas mais inverosímeis e grotescas, decalcadas do mais castiço jardinismo. E prepara-se, pelos vistos, um "remake" da teoria da "conspiração dos pregos" inventada por Angelo Correia nos saudosos tempos do PREC. Desta vez, os comunistas estariam a tramar uma sinistra desestabilização do regime democrático (outra recorrente obsessão jardinista) através das greves da polícia e dos serviços de fronteiras durante o Rock In Rio e o Euro-2004.
A língua de pau soltou-se em Oliveira de Azeméis, mas Durão não sentiu a necessidade de fornecer quaisquer razões plausíveis para o golpe de teatro no Ministério do Ambiente a poucas horas da abertura do Congresso (embora tenha sido o único acontecimento verdadeiramente noticiável desses dias de fictícia glória "laranja"). Beatificada como santa dilecta do partido, Manuela Ferreira Leite não se viu naturalmente obrigada, dias depois, a dar quaisquer satisfações sobre o incumprimento dos seus deveres fiscais (ela que também abençoa os delírios orçamentais de Alberto João Jardim, mas se mostra tão implacável com os pecados dos cidadãos comuns). Embora Jardim tenha passado fugazmente pelo congresso, de volta às suas prédicas eleitorais nos adros das igrejas madeirenses, a verdade é que deixou por lá o seu rasto inconfundível, como se tivesse chegado a hora de o PSD continental ser convenientemente ajardinado. Ou será que me enganei outra vez?

(Diário Económico, 28 de Maio)

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